AMIZADE FRATERNAL COM HILÁRIO DURA HÁ QUASE 70 ANOS

Monte Frio, 25 Fevereiro 2014

«King» Eusébio é uma lenda viva!


Cristiano Ronaldo continua em estado de graça, a brilhar intensamente, somando golos e mais golos, espalhando seu enormíssimo talento pelos grandes palcos do futebol mundial. Tem vestido a camisola dos mais prestigiados emblemas europeus, para construir uma carreira fantástica. Aliás, como também aconteceu com Luís Figo. Contudo, Eusébio da Silva Ferreira é o maior ícone do futebol português. O «King» – como é tratado no mundo do futebol – mantém-se na crista da onda, a ser idolatrado como uma das maiores figuras de sempre do futebol mundial, solicitado para todos os cantos do globo, convidado pelas organizações internacionais para os mais variados eventos, e a ser homenageado pelas mais diversas entidades desportivas e sociais. Para quem não sabe, só nos últimos tempos, além fronteiras, Eusébio foi homenageado na Polónia (como um dos reis do futebol, sua face foi cunhada em moeda polaca), em Itália (cavaleiro de Milão), Inglaterra, Estados Unidos, Espanha, África do Sul, República Checa (nos 80 anos do famoso Masopust), Moçambique, Brasil, México (Salão da fama). Como se vê, o homem não pára. Recentemente, esteve presente em Madrid, ao lado de Alfredo Di Stefano, na entrega da Bota de Ouro a Cristiano Ronaldo (goleador 2010/11) e está convidado para assistir à entrega da Bola de Ouro 2011, cuja cerimónia decorrerá em Zurique (Suíça) no próximo dia 9 de Janeiro. Tudo isto sem contar com a assiduidade que mantém no Benfica e na Selecção Nacional.

Futebolista do século XX

Em termos de fama, não é normal uma longevidade tão prolongada mas, na verdade, o tempo passa e Eusébio (célebre «Pantera Negra», que encantou o mundo do futebol com exibições fabulosas e performances invulgares), mantém a auréola cintilante dos deuses. Ele não é apenas um símbolo do Sport Lisboa e Benfica, nem um embaixador da Federação Portuguesa de Futebol. Muito mais que isso, Eusébio é o … «King». Foi escolhido como futebolista português do século, sendo considerado pela FIFA, um dos dez melhores jogadores de todos os tempos (ao lado de Pelé, Di Stefano, Johan Cruyff, Beckenbauer, Michel Platini, Bobby Charlton, Ferenc Puskas, Lev Yashin e Stanley Matews). Por duas vezes ganhou a Bota de Ouro, como melhor goleador da Europa; ganhou a Bola de Ouro, como melhor futebolista da Europa; ganhou os prémios de melhor avançado e melhor goleador do Campeonato do Mundo-1966, em Inglaterra (quem vai esquecer aquele golo ao Brasil e os quatro à Coreia?); várias vezes vestiu a camisola das selecções da FIFA e da UEFA. E então a nível nacional… com a camisola berrante… levou o Benfica a consagrar-se em glória por todo o mundo. Eusébio e o Benfica tornaram-se indissociáveis. De águia ao peito, Eusébio foi campeão da Europa (5-3, ao Real Madrid), conquistou 11 campeonatos nacionais e cinco Taças de Portugal; por sete vezes ganhou a «Bola de Prata», como melhor goleador do campeonato; disputou 715 jogos e marcou 727 golos, influenciando (e de que maneira!) uma hegemonia vermelha a que só o rival Sporting respondia de quatro em quatro anos, motivando duas décadas de surpreendente hibernação do FC Porto.

O título da celeuma

Ainda bem que filmaram os seus maiores feitos, ainda bem que passam frequentemente as imagens dos seus golos no Benfica e na selecção, para que novas gerações fiquem a saber quem é o lendário Eusébio da Silva Ferreira, o jovem moçambicano que no século passado ensinou ao mundo onde fica Portugal. Com todas as virtudes e defeitos será respeitado como um ícone do futebol, como um dos maiores futebolistas de sempre em todo o universo.
Vem isto a propósito dizer que Eusébio, sendo quem é, tendo estatuto de importante e mediático, é alvo apetecível para a agressividade dos órgãos de comunicação social, desejosos de criar e explorar celeumas e assuntos controversos.
Acontece que na semana que antecedeu o derby lisboeta, King Eusébio concedeu entrevista a um semanário, onde afirmou que, sendo adepto do Desportivo, não gostava do Sporting de Lourenço Marques (Moçambique), primeira equipa onde jogou, porque era o clube dos brancos. Tal frase motivou o título que indignou os sportinguistas: «Não gosto do Sporting porque é um clube racista». A consequente reacção dos apaniguados leoninos surgiu forte e, como forma de contestação, o jornal do clube usou o antigo jogador Hilário para contrapor o seu inseparável amigo Eusébio, inclusivamente, atribuindo-lhe a dica que este havia fugido do Lar do Benfica para jogar em Alvalade. Em suma, tal como alguns desejavam, a celeuma e a confusão estava instalada na opinião pública. Nada melhor em semana do Benfica – Sporting do que uma zanga de irmãos. As entrevistas de Eusébio e Hilário foram tema de conversa nos cafés, na rua ou nos escritórios. Dizia-se que os grandes amigos estavam danados um com o
outro e que haviam rompido a amizade fraternal de uma vida. Como se isso fosse possível…

Hilário e Eusébio: «Somos irmãos!»

Como tenho o privilégio (e orgulho) de ser amigo de ambos, telefonei-lhes para indagar
e ficamos a saber que Eusébio e Hilário tinham almoçado juntos, precisamente para esclarecerem a situação: «Nós somos irmãos!», afirmaram. E, para que não restassem dúvidas, ambos acederam à sugestão de nos juntarmos ao almoço do dia seguinte para, numa entrevista ao jornal A BOLA, esclarecer a opinião pública, repondo a verdade de uma amizade inequívoca que não foi abalada e perdurará até final dos dias.
Na companhia do José Manuel Delgado e do fotógrafo André Alves encontramo-nos, como combinado, no Restaurante «Tia Matilde», em Lisboa. Vestimos Hilário e Eusébio com as respectivas camisolas do Sporting e do Benfica e passamos a tarde numa longa conversa, que encheu as quatro páginas de abertura do jornal. Na véspera do «derby» nada melhor que uma capa de A BOLA com a foto, em grande, do Hilário e do Eusébio abraçados e a fazer manchete, a frase que os dois afirmaram convictamente: «Somos irmãos».

No texto, o sentimento de ambos serem traídos (ou usados) nas entrevistas. Eusébio esclareceu: «colocaram coisas que eu disse, fora do contexto. Porque falei do que se passava em Moçambique há 60 anos. No Sporting de Lourenço Marques. E não no Sporting Clube de Portugal, como o título sugere. O Sporting de Lourenço Marques era, na realidade, o clube dos brancos e do poder económico. Por isso arranjava emprego para os jogadores. O Hilário trabalhava como canalizador na Companhia das Águas e eu na Volkswagen. Não tinha especialização, ganhava 1.175 escudos por mês, que era muito bom para ajudar a família. O que fazia lá? Por volta do meio-dia almoçava na fábrica e levavam-me ao treino.
No final aparecia o senhor Camilo Antunes, com sandes e chocolates, e levava-me a casa no automóvel. Ora isto, de chegar de carro à Mafalala dava-me cá um prestígio… Tratavam-me bem. Mas toda a gente sabe que durante 35 anos só jogadores de raça branca jogaram no Sporting. O Hilário foi o primeiro negro a jogar lá. Por isso até houve quem lhe deixasse de falar no nosso Bairro da Mafalala. Eu fui o segundo… porque fui treinar à experiencia no meu clube, o Desportivo e não me quiseram», recordou. «Tenho muito respeito pelo Sporting», diz Eusébio «Sem que possa falar-se de apartheid, nesse tempo havia duas associações de futebol que praticavam a diferença racial. Mas isso era nos anos 50 do século passado. Agora, que fique bem claro: Nunca na vida me referi ao Sporting Clube de Portugal. Tenho muito respeito pelo Sporting, tenho muitos amigos no Sporting e do Sporting e não me podem levar a mal que tivesse um gosto especial cada vez que lhes ganhava. Sou muitas vezes mal interpretado quando falo do Sporting. Quem me conhece percebe o que quero dizer quando digo que não gosto do Sporting. Há quem goste de tirar conclusões erradas e precipitadas. O Sporting é que é o grande rival do Benfica, era sempre o jogo do ano», concluiu o Pantera Negra.

Por sua vez, Hilário da Conceição (velha glória dos leões, considerado o melhor lateral esquerdo do campeonato do mundo de Inglaterra 1966) fez questão de salientar: «Eu e Eusébio somos amigos desde sempre. Quase há 70 anos. A minha casa, no Bairro da Mafalala, era junto à dele, as nossas mães eram amigas, os nossos irmãos também. Como posso explicar? Somos irmãos!», justificou, com um bom exemplo: «Mesmo em Lisboa, cada um em seu clube, a amizade e convivência manteve-se em alta. Em 1976, quando Eusébio foi jogar para os Estados Unidos deixou em minha casa um caixote com relógios de marca. Eram muitos anos de ofertas. Aquilo valia uma fortuna… mas ele não deixou aquele tesouro em nenhum banco. Deixou-o comigo». Enfim, Eusébio e Hilário são amigos inseparáveis e, garantem, sê-lo-ão até ao fim da vida. Rivais (em termos clubísticos) mas irmãos. Não há jornal, rádio ou televisão que possa perturbar essa vivência fraternal.

A pneumonia do King

Quando acabei de escrever esta peça de reportagem, estava longe de pensar que o meu amigo Eusébio voltaria, nos últimos dias, a concentrar as atenções da comunicação social. Desta feita, infelizmente, por razões de saúde, o nome do King surgiu nas aberturas dos noticiários e telejornais e nas primeiras páginas de todos os periódicos. Uma pneumonia bilateral levou Eusébio ao internamento hospitalar. Durante quase duas semanas o Hospital da Luz foi local de estacionamento da caravana jornalística, com o médico, José Roquete, a apresentar-se diariamente para dar conta do estado de saúde do Pantera Negra. Felizmente tudo ultrapassado, o restabelecimento está feito. Eusébio é o maior. Como cidadão do mundo, merece-nos todo o respeito.

V. C.


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