A tropa em Moçambique

A tropa era obrigatória, embora dissessem que era voluntária mas não. Íamos à inspecção, se ficávamos aprovados tínhamos que ir à tropa. Eu penso que na altura quando veio a guerra das ex-colónias, acho que ninguém ficava, parece que ia tudo. Iam cegos, aleijados, eu não sei quem é que ficaria por aí, devia ser só alguém com grandes pedidos ou mesmo uma deficiência muito grande é que não ia à tropa. Até pessoas com deficiência lá iam. Se não fosse para umas coisas, eram para outras. Prestavam auxílio.

Assentei praça em Agosto de 1968 e em Janeiro de 1969 fui para Moçambique. Como quando fui à inspecção tinha a profissão de ajudante de camioneta fui para motorista na tropa. Embora eu já tivesse umas luzes, aprendi a conduzir na tropa. Assentei praça no CICA 4 em Coimbra. O CICA era de aprendizagem de condução e tirei a especialidade de condução, no Porto.

Entretanto, sou mobilizado e fui para África. Fui para Moçambique no barco Niassa. Demorei um mês a lá chegar. Comigo nesse barco foram também pessoas das redondezas. Da freguesia de Pomares, da freguesia do Barril. Eram uns da minha companhia, outros do mesmo batalhão. Por exemplo os condutores do meu batalhão saíam quase todos de onde eu assentei praça, de onde tirei a especialidade. Tinha alguns conhecidos, embora para a minha companhia não fosse ninguém da minha zona. Iam do mesmo batalhão, um rapaz que era de Pomares, casou na Cerdeira, outro rapaz que era do Barril e outro do Sardal que hoje reside em Côja. Este era o único mais conhecido. Já nos conhecíamos desde miúdos, desde o tempo da catequese. Os outros foi por proximidades de assentarmos praça e sermos da mesma zona.

A minha função em Moçambique era conduzir colunas no mato. Nessa altura já tinha rebentado a guerra. Eu fiquei num quartel desviado de onde foi a minha companhia, a quase 200 e tal quilómetros. Fiquei a tirar o chamado especialidade de camiões grandes para fazer colunas de abastecimento. Transportava géneros alimentares. Levávamos escoltas mas íamos em unimogues. A minha viatura ia sempre carregada com bens alimentares: mercearias, arroz, massa, bebidas, de tudo. Era um trabalho tão perigoso como o dos militares. Nós íamos numa picada, nunca sabíamos onde é que estava a mina. Eu por acaso nunca apanhei nenhuma emboscada. A coluna, às vezes, era extensiva e apanhei dois ou três sustos mas por brincadeiras das pessoas que iam à frente. Íamos em comboios com os carros, uns com mercadorias e os outros de guarda mas tudo descapotável, tudo aberto. A nossa blindagem eram os sacos de areia por baixo dos assentos. Os atiradores iam sentados nos bancos daqueles unimogues e eu conduzia um Berliet, era eu e mais dois ao lado. Eu fazia, chamávamos-lhe a Ilha de Metarica, que era onde estava a minha companhia, até o centro de abastecimento , em Marrupa. Eram 165 quilómetros que às vezes demoravam uma semana a fazer.

Quando chovia formavam-se as languas, que era onde a água acumulava. A gente metia lá os camiões e depois passávamos o tempo a tirá-los, a desenterrar os camiões. Eles tinham tracção às quatro e mesmo assim ficávamos presos. Há alturas que fazíamos rápido, mas outras que se chovesse, a gente já sabia que ia com uma coluna para demorar quase uma semana para fazer 165 quilómetros. Sempre com muita atenção, a essas coisas todas. Quando os camiões atolavam tínhamos que os tirar uns com os outros, com os guinchos. Aqueles camiões estavam preparados com os guinchos, amarrava-se a uma árvore, puxava-se ou tirava-se uns aos outros. Outras vezes esperava-se que secasse, porque secando já saía.

Eu fazia colunas com outro condutor da minha companhia. Era à vez, enquanto um fazia uma, o outro descansava e andávamos sempre nisto. Entretanto, a companhia recebeu mais uma Berliet, como ele não tinha muita prática quis ficar nas colunas e eu passei para dentro da companhia. Essa Berliet tinha uma avaria e foi isso que proporcionou a que eu tivesse um acidente. Nesse acidente ficou um rapaz, também condutor, debaixo do camião e faleceu. É aqui que se prolonga a minha estadia, infelizmente, em Moçambique. Estive lá mais dois anos e três meses que o resto da companhia por causa do acidente e da burocracia, que já havia nesse tempo.

Entretanto como estávamos no norte do Niassa, fomos rodando. Viemos para Nova Freixo. Nova Freixo ainda fica praticamente dentro do Niassa mas foi pouco tempo. Depois viemos para o sul, para Namacha, chamavam a cinta portuguesa. Já tinha um clima fresco, já era preciso vestir blusão e tudo. Foi aí que a minha companhia veio embora e eu como ficava vim para os Adidos, em Lourenço Marques, que hoje se chama Maputo, e estive sempre por ali. Ora fora do quartel, ora dentro do quartel.

A camaradagem era a melhor, ainda hoje é. Fazemos almoços todos os anos.

Quando fui para o quartel na Ilha de Metarica, que era onde estava a minha companhia, todos nós tínhamos uma camarata própria. Tínhamos uma camarata por condutores, por operadores criptos, por transmissões, por atiradores e era tudo debaixo do chão, coberto com um troncos e areia, era uma espécie de uma cova. Todos tínhamos uma cama é claro, e em volta disso tínhamos uma vala muita funda que era para escoar as águas, porque tínhamos um rio a 500 metros, o Lugenda. Esse rio, quando chovia, transbordava e vinha ter com a gente.

O tempo de tropa traumatizou-me porque eu era casado, e já tinha duas meninas. Para comunicar com as pessoas da terra era através de cartas e aerogramas. As cartas tinham que levar selo e tínhamos que pagar. O aerograma era um correio gratuito dos militares, mas aquilo levava pouca coisa dentro. Às vezes, se a gente tinha muita coisa a dizer, por uma carta tinha que pagar o selo. Normalmente as tropas era tudo em aerogramas, mas as famílias respondiam mais em cartas. Eu penso que não demorava muito tempo, uma semana ou assim porque havia quase diariamente aviões. Mas os aviões demoravam muito tempo. No mato, a distribuição do nosso correio era feita pelas aeronaves mais pequenas, a gente chamava de DO's, que nos levavam alguns géneros mais frescos. Quase todos os quartéis no meio do mato tinham uma pista em terra, onde aterrava um avião pequenino. Pelo menos na Ilha de Metarica era assim. Levavam-nos o correio, levavam alguns géneros de primeira necessidade, géneros mais frescos porque senão tínhamos de comer sempre arroz com feijão e feijão com arroz. Aquilo levava um peixezito ou uma carne mais fresca, senão tínhamos que andar sempre à caça.

Durante a guerra, fiquei cinco anos fora de casa. Nunca vi a minha família nesse período. Tive, por exemplo, em Lourenço Marques, pessoas da terra. Tive uma prima direita, que é professora, que esteve lá com o marido e os filhos. Hoje ainda é viva. Também lá estava uma senhora que é quase da minha idade que é só ela viva, os pais e o marido já faleceram. É a dona Arlete. Também a conheci em Lourenço Marques. Também me dei com uma senhora que era cabo-verdiana, que chamávamos a “madrinha do soldado”, estava acamada, tinha tido um acidente. Fui-lhe dar conhecimento a ver se me despachava mais rápido por causa do auto que eu tinha. O marido era da freguesia da Benfeita. Em Lourenço Marques foi o que muito me valeu. Ela fazia muitas festas para os soldados, fazia de uma coisa e outra. Ela andava numa cadeirinha de rodas e eu andava sempre com ela.

Nunca estive assim muito abandonado em Lourenço Marques. Eu nunca estava no quartel, vim trabalhar para fora. Na tropa trabalhei em dois restaurantes e numa boite durante a noite. A partir do momento em que a minha companhia veio embora, para mim não houve mais tropa. O serviço que eu tinha de fazer dentro do quartel dos Adidos, no B.C.18 em Lourenço Marques, eu pagava-os. Com o dinheiro que eu tinha a levantar, que era 800 e poucos escudos, da tropa, deixava ficar ao Cabo da secretaria e ele punha os serviços a quem queria e pagava.