“Fui feliz, graças a Deus”

De rapariga, era só eu. Fui sempre muito bem criadinha. Sempre, sempre. Fui feliz, graças a Deus Nosso Senhor. Os meus irmãos não me batiam. Era só eu de rapariga, mas eles não me batiam, nem me podiam tratar mal nem nada. Eu era bem tratada, ensinada. Pois era. E quando iam comprar um vestido ou uma roupa qualquer, compravam-me do que era bom.

Eu tinha umas ideias muito lixadas. Dava-me para ir fazer isto, para fazer aquilo. Era a minha ideia. Eu não sabia. Fazia as coisas. Ninguém me ralhava, porque eu era garotita. Ninguém me dizia “Ó menina, vai ao mato” ou “Ó menina, vai buscar a lenha”. Era pequenita, baixita.

Sem ninguém me mandar, peguei numa corda e numa roçadoira e fui para o mato, que era perto de onde a gente vivia. Cheguei em cima ao mato, pus-me assim a olhar, digo:

- Oh! Então, mas agora eu não sei roçar mato, nunca vi roçar mato, como é que eu agora roço o mato?

Pus-me a olhar para o mato, mas não sabia como o havia de roçar. Que é que eu fiz? Comecei a juntar uma carumita. Mas não sabia fazer a paveia, porque era preciso fazer uma paveia para se pôr na corda para depois se segurar. Juntei a caruma, fiz a paveia, pu-la na corda, vou para pegar no molhito da caruma, era só a caruma junta, “esternicou-se” por mim abaixo. Fui-me embora para casa sem nada. Eu não sabia. Era garotita. Ninguém me mandava. Era eu que ia assim. Dava-me para aquilo.

Eu tinha um irmão mais novo do que eu. Digo assim:

- Ó Artur, tu trazes o cabelo grande.

Comecei-lho a cortar assim “pia além”. Quanto mais cortava, mais mal ele parecia. Mas como ele usava um barrete, punha-o na cabeça. O meu pai nem sabia que eu lhe tinha andado a cortar o cabelo, mas cortei-lho.

Doutra vez, estava a tosquiar um borrego, um filhito de uma ovelha. Os borregos são chatos de tosquiar. Sem ninguém me mandar, vou-me pôr a tosquiar o sacana do borrego. Eu trazia de tarde duas mulheres. Andavam de fora a ganhar o meio dia. Iam trabalhar para a gente e a gente pagava-lhe meio dia. Era para irmos lá para uma fazenda que a gente lá tinha mais para baixo. Digo assim:

- O raio do borrego não o consigo tosquiar! Daqui a nada, chegam cá as mulheres para irmos fazer o meio dia e eu com o borrego por tosquiar.

Mas “bumba” dum lado, “bumba” do outro, tosquiei-o ainda antes de chegarem. Quando chegaram, já eu tinha tosquiado o borrego. Era tudo assim.

Quando eu andava na escola, que era no Areal, havia lá umas mimosas brancas. A gente agarrava-se àquela ranca e dizia assim:

- “Empurra-me”!

E quem estava na estrada empurrava e a gente ia por além. Ia agarrado à árvore “pia além”, mas tornava a vir. Dava-se um empurrão, ele vinha outra vez para aquém. Um dia, um rapaz disse assim:

- “Empurra-me!”

Deu-lhe um empurrão, mas ele não se agarrou bem ou não sei e foi para o meio da água. Molhou-se todo. Teve um dos que andavam na escola que lhe emprestar um fato para ele se vestir.

Outro calhou ser um rapaz e uma rapariga. Ó raça da rapariga dá um empurrão ao rapaz, ele também não estava bem seguro lá naquilo e “zumba” para lá para baixo, para o poço da água. Molhou-se todo. Tiveram que o levar para modo de lhe emprestarem uma roupa, que ele não era de cá da Benfeita, mas vinha para cá para a escola. Andavam cá na escola uns do Sardal, outros dos Pardieiros. Depois, foram para outros lados, mas naquele tempo só havia escola aqui na Benfeita.

Eu também atirei uma para a água sem querer. Ela disse assim:

- “Puxa-me!”

Eu puxei. Dei-lhe um puxão, “bum”! Ela não se segurou, foi para a ribeira. Foi para a ribeira! Molhou-se toda! Mas era cá da Benfeita, foi vestir-se. Foi tirar o fato e vestir outro. Eu era rapariga e a que eu atirei assim “pia além” também era e ninguém me disse nada. Ficou tudo bem.