“Deitar com a barriga só meia”

Começáramos novos a ajudar os nossos pais. Assim que pudéramos, cada um esgadanhava para seu lado. Eu estive a servir, como alguns dos meus irmãos estiveram. Pelo menos, saíam de casa e sempre enchiam mais a barriga a servir do que em casa, onde havia muita fome. Às vezes, à noite, a gente ia-se deitar com a barriga só meia.

Quando íamos para o campo, lá se levava uma bucha ou então iam levar o almoço à gente. Uma buchazita antes do meio-dia, o comerzito ao meio-dia e a merenda à tarde.

Cheguei também a andar na resina, nos pinheiros. Fazia de tudo um pouco. Fiz trinta mil e uma coisas. Qualquer coisa que aparecia, tinha de se fazer, tinha de se aproveitar. Fora disso, a vida era precisa num lado qualquer. Se as pessoas precisavam que a gente fosse a uma povoação fazer alguma coisa, nós tínhamos que ir. Trabalhávamos desde que amanhecia até anoitecer. Não é como agora, oito horas. Começava-se a trabalhar quando amanhecia e só se parava à noite. Nem sequer era de sol a sol. Era mais que sol a sol.

Passávamos o tempo umas vezes a fazer bem, outras vezes a fazer mal. Nós, naquele tempo, não podíamos ser teimosos, porque os pais não eram como agora. Eles chegavam-nos a roupa ao pêlo quando a gente fazia mal. Agora não se pode fazer isso. Mas naquele tempo era assim. Às vezes, lá fugíamos para ir tomar banho a umas poças quaisquer que havia. Lá havia um abrunheiro ou uma macieira em qualquer lado, aquilo ia de abalada. Onde a gente as descobrisse, ia lá “ganchar” qualquer coisa. E era assim que a gente, às vezes, até matava a fome. Os donos gritavam com a gente e depois iam fazer queixa aos pais. A minha mãe chegava-nos a roupa ao pêlo. Quando nos tocasse a fazer mal, os pais não perdoavam.

Não havia entretém, não havia nada. Deitávamo-nos à noite até de manhã. Que é que havia aqui? Só em Agosto pela festazita quando apareciam as pessoas. Era quase como agora. Aqui não havia cinema, não havia teatro, não havia nada. As brincadeiras eram os bailezitos aos domingos. Era o nosso entretém. Pelo Carnaval, chegáramos a começar o baile um mês antes. Um mês antes! Era onde a canalhada, a rapaziada, se entretinha. Aqui havia muita rapaziada. Não é como agora. Agora não há aí nem um. Naquele tempo cada casa tinha quatro, cinco, seis filhos ou mais. Havia pessoas aí com dez filhos! Agora, têm um e dois e mais nada. Isto era muito povoado.

Havia sempre uma casa onde se faziam os bailes. Um agarrava numa viola, outro agarrava numa guitarra e assim fazíamos a festa. Eu agarrava numa viola, tinha um irmão que também tocava e entretínhamo-nos naquilo. E havia sempre as tabernas. Havia duas. Taberna e mercearia. Era ali que nos juntávamos e fazíamos os nossos petisquitos. Agora, já não há nenhuma. Só temos a Casa do Povo. Vamos para lá e lá nos entretemos.