“Tinha a arte de sapateiro”

Ele tinha a arte de sapateiro. Trabalhava muito bem em calçado novo. Vinham cá uns caixeiros da Figueira, vinham de Coimbra, vinham de Oliveira do Hospital, vieram de Viseu, vinham destas terras todas cá trazer os cabedais.

Uma vez, um dali dos Pardieiros ia para Braga, quando era no tempo das camélias. Levou umas botas novas que ele lhe tinha feito. E lá em Braga disseram assim:

- “Onde é que você comprou essas botas?”

Diz ele:

- “Foi um sapateiro da minha terra - nem era da terra, mas pertencia - que mas fez.”

Diz ele:

- “Ai, eu também gostava dumas botas como essas.”

- “Então, se quiser, eu levo-lhe as medidas, que ele faz-lhe as botas e manda-lhas. Eu pago lá as botas e você paga-mas a mim.”

- “Está bem!”

Ele lá tirou a medida, levou as medidas, o meu homem fez-lhe as botas e as botas ficaram-lhe bem. Nem estavam largas, nem estavam apertadas. Ficou todo contente com as botas!

Até para Lisboa fez umas, para o senhor Gaspar. Quando foi lá a Lisboa, levou as botas calçadas e o compadre, quando o viu com aquelas botas, disse assim:

- “Ó compadre, você traz aí umas botas boas e bonitas. Onde é que você as arranjou?”

Ele disse-lhe assim:

- “Isto é um dos sapateiros da minha terra, da Benfeita, é que faz estes calçados.”

- “Oh! Então, você tem que lá dizer, que ele também tem que fazer lá um par desse calçado para mim.”

Até lá para fora para a África chegou a ir daquele calçado dele. Não havia cá ninguém assim para trabalhar. Veio para aí um, que fazia uns chanatozitos e assim, mas quê? Bebia, embebedava-se, não dava nada. Não arranjava vida nenhuma. Depois, o meu marido tinha cataratas numa vista e abandonou. Já estava a trabalhar há 50 anos. Começou de pequenito nos chanatos. Já estava há muitos anos a trabalhar naquilo. Naquela altura, abandonou. Já nem mandou vir mais nada dos cabedais, nem nada.

Tive pena dum, que era um rapaz que andava a estudar para as Belas-Artes lá no Porto. Ele era Carlos. Usou sempre, sempre, sempre as botas que o meu marido fazia. Nunca usou outro calçado. Dizia assim:

- “Ó tio Nunes, você tem que me lá fazer dois pares de botas. Tem que lá fazer!”

Queria ficar sortido. Ele disse-lhe assim:

- “Ó Carlos, tenho muita pena... Foste sempre um freguês meu, usaste sempre as mesmas botas que eu fazia. Sempre, sempre” - e foi, nunca usou outro calçado senão aquele - “mas já nem tenho cabedais para nada. Já arrumei tudo.”

Diz ele assim:

- “Olhe, mas eu comprava os cabedais e você fazia-me as botas.”

Disse assim:

- “Ó filho, não pode ser... Eu para te fazer as botas, tenho que ir para a sapataria. E, se eu estou na sapataria à beira da rua, passam lá, vêem-me lá, vão lá e querem também. E se eu fosse a fazer só para ti e não fizesse para eles, começavam a dizer que eu que só queria trabalhar para os ricos e para os pobres que não queria. E depois vão lá e dizem: “Então, fazes para este e não fazes para mim?” E eu não quero. Não gosto destas coisas assim. Tenho muita pena, porque foste meu freguês sempre. Tenho muita pena, mas não pode ser, porque eu estou lá a trabalhar, passam lá e vêem-me.”

Ele era um homem muito sério, coitadinho, não gostava de ofender ninguém e ficou-se assim.