Recordações de Moçambique

Cada um arranjava lá os seus empregos. Uns estabeleciam-se, mas o meu marido era funcionário do Estado. Estava a tomar conta de pretos nas plantações de chá e de café. Estivemos primeiro na Namaacha uns anos, que era pertinho de Lourenço Marques. Antigamente era Lourenço Marques. Agora não, é Maputo. Depois foi para Milange e esteve numa plantação de chá em Vila Junqueiro. Mais tarde foi para Quelimane. Aí é que estivéramos mais tempo. É assim. Os capatazes das plantações eram transferidos de uns lados para os outros e o meu marido tomava conta de uma data de pretos e de indígenas. Ele e outros. Tinham uma lista e de manhã faziam o ponto para irem para o serviço. Chamavam por os que estavam a ver e lá iam. Ele tinha muito preto para tomar conta.

Eu era em casa sempre. Fazia a vida de casa. Lá a gente tinha de fazer tudo em casa, mas também tínhamos preto para ajudar. Havia indígenas também bons, bons criados e tudo. Havia outros que não eram. Era conforme. Ao princípio tive receio de ver aqueles pretos. Mas depois habituei-me bem. Era só rapazitos que andavam a trabalhar e, às vezes, lá iam-me fazer também o serviço. Alguns falavam português, porque andavam na escola. Outros falavam outras línguas. Mas a gente lá compreendia qualquer coisa. Dei-me sempre bem.

Tinha um criadito que me ajudava para ir buscar as coisas, fazer os recados e para qualquer coisa. Tive uma vez um que era André e tive outro que era Sabão. Que nome! O nome deles. Sabão! Era assim. Tinha muitos nomes assim comparados com este. Se fosse preciso, também lavavam a loiça, lavavam o chão, lavavam a roupa, faziam tudo como uma mulher. Mas eu não, a roupa era sempre eu. Lá não havia também máquina naquela altura. Era nos tanques. E eu sempre gostei de andar com as mãos na água.

Três filhos davam-me bem que fazer para irem para a escola e assim. E, às vezes, as escolas eram um bocadito longe. Em Vila Junqueiro, tinham de ir de carro, mas ia lá um empregado da plantação levar os miúdos que não era só o meu marido que estava. Eram muitos. Era práticos agrícolas, era regentes agrícolas, era chefes de tudo. E tinham aqueles empregados que eram os encarregados do campo do pessoal.

Tenho muitas recordações dos tempos de África. Muito mesmo. Às vezes, as pessoas até se admiram de eu ainda ter - agora já não - pessoas a escreverem-me desde essa altura. A gente vem para cá, uns vão para um lado, outros vão para o outro. Mas tive sempre boas vizinhas. Era um convívio bom porque, quando se via alguém conhecido daqui, era uma alegria. Nas plantações, as casas eram assim todas perto. E, quando se fazia a vida, a gente queria descansar um bocado. Então, ajuntávamo-nos umas com as outras, as vizinhas, a costurar rendas e bordados. Ali em Lourenço Marques, tínhamos uma leiloeira. Sabiam que a gente estava ali e depois juntava-se muita gente conhecida na minha varanda. Era uma alegria quando se ali juntavam pessoas de cá. Era assim a vida.

Estive em África 25 anos. Fui com 25 e vim de lá com 50 anos. Voltámos porque aquilo depois já não estava muito bom. Havia chatices. Ainda me lembra aqueles barulhos. Ainda lá estava.