“Quando falo em Moçambique, choro sempre”

Passámos lá muitas amarguras, muitas, muitas. Tinha medo de noute. Tínhamos lá os cães e todos os dias que eu lá estive, ali dormia a tropa. Um dia, digo assim:

- Ó César, ai que o cão faz tanto barulho! Vai ver o que está aí a acontecer.

Porque, às vezes, passavam os leões, passava essas coisas todas. Ele disse:

- “Olha, está uma companhia de tropa ali a dormir na nossa varanda!”

Não era a companhia inteira. Era um revoltado do 25 de Abril. Era sargento lá, mas ele era tão bom, tão bom... Era capitão da 9.ª Companhia de Comandos. Até vem muito à televisão, mas não recordo agora o nome dele. Ele era misto, que ele era de Moçambique. Trazia-os ali aprumadinhos. Tanto comia o preto como comia o branco. Tratava tão bem os pretos. Os sapatos bem engraxadinhos, tudo bem vincadinho. Nunca lá vi um capitão como aquele. Em minha casa era obrigatório: tinham que comer sempre umas sandes ou beber uma cerveja. E passavam muitos capitães, soldados. Tudo que havia na tropa ali passava. Nem tinha medo. Também tínhamos lá um polícia preto, que guardava a gente, e os cães.

Da guerra, ouvia-se a falar. Ouvíamos dizer:

- “Olha, agora aquele carro foi atacado. Apanhou uma mina.”

E morreu lá, pegado aonde a gente vivia, um cozinheiro com uma mina. Um dia, estávamos a almoçar. Digo assim:

- Ó César, ai que barulho aí vem!

Eram helicópteros que estavam a parar à nossa porta. Depois, o meu Zé Alberto, o meu filho, esteve em Mueda. Havia lá um quartel subterrâneo e foi atacado. Ele apanhou uma pilha de nervos... Ainda hoje tem esses nervos, que apanhou por cima da praia em Mueda. Mas o trabalho era tanto que a gente nem se apercebia o que é que estava para acontecer. Sabiam mais as pessoas fora que sabíamos nós. Tinha uma casa ali perto. Aí já eu tinha bastantes terroristas. Mas nunca nos aconteceu nada. Íamos lá levar mercadoria, porque de dia não tínhamos vagar, por causa de fechar as portas. Depois, o carro enterrava-se. Era uma paródia. Aquilo era giro.

Tenho muita pena de Moçambique, muita, muita. Quando o meu marido morreu, eu estava sozinha e não fiquei assim muito bem. Mas, depois, também tinha de vir à Benfeita, porque tínhamos o cemitério, tínhamos que comprar o terreno. De três em três anos vinha cá. Tenho umas quatro ou cinco viagens de avião! É a coisinha melhor que se pode fazer. Ainda tenho pena de não voltar a África ou a um lado qualquer que fosse de avião. E eu vinha, porque gostava também de vir ver os amigos, de ver a família. E foi assim que vim. Foi o que eu fiz melhor. Ficava lá tudo assim como ficou. Minhas casinhas tão boas... Ai, nem me quero lembrar. A casa do Metorro era uma casinha tão boa. Chamavam lá Cruzamento da Viúva. Se deixou saudades… Eu quando falo em Moçambique, choro sempre. Lembro-me de como tinha lá a minha vida bem encarreirada. Mas o meu marido morreu e a vida tinha que continuar. Aluguei as casas aos meus irmãos e vim. Mas, depois, deu-se o 25 de Abril. Nem eles me pagaram, nem eu lhe podia estar agora assim:

- Ah, tens de me pagar!

Haviam de pagar? Então, eles também ficaram sem nada. Foi assim a vida e foi uma vida bonita. Se o meu marido fosse vivo, a gente ainda continuava. Ficou lá muita gente a viver. Mas é preciso estarem guardados. Até mesmo em Luanda, está lá um primo meu. Diz que não podem ir à praia sozinhos. Vão sempre guardados com a tropa de lá, com a polícia.