Memórias de tempos difíceis

A aldeia já foi uma aldeia mais reles. Antigamente, iam buscar as urnas, os caixões para levar os mortos a Arganil a pé. E vinham a pé com elas à cabeça. Uma mulher com metade, outra com outra metade. Depois, paravam no caminho, às vezes, dançavam. Antigamente, elas iam daqui para o Pai das Donas, para as Luadas e para o Sardal com dez e 12 telhas à cabeça! Iam ganhar 8 e 10 tostões! A miséria que era naquele tempo. Aos domingos, era a bichinha para irem lá ganhar 10 e 8 tostões, que era uma miséria. E carregadinhas aqui “pia cima”. Eu não tinha essa vida. Às vezes, ainda lá cheguei a ir, mas eu era mais por paródia, para ir com as mulherzinhas.

Até cá houve uma coisa muito engraçada. Aqui, as mulheres andavam a carregar as cavacas no tempo do Verão, que era depois para terem de Inverno. Um dia, elas vinham de noite aqui para baixo, para as cavacas, e os rapazes pensaram em se juntar ali perto da igreja. Às vezes, faziam dois, três caminhos de noite. Nem sei já quem foi o rapaz. Diz assim:

- “Elas, amanhã, estão a combinar, vêm aqui para o adro. Nós vamos-lhe meter susto!”

Começaram a tocar o sino. Depois as mulherzinhas que iam para as cavacas:

- “Ai, o que é que aconteceu? O que é que aconteceu!? Estão a tocar o sino, estão a tocar o sino, o que é que aconteceu?”

Àquela hora, de noute, as horas davam, mas aqueles toques, não. Depois é que eles, então, apareceram. Vinham tocar o sino, que era para assustar as raparigas. Elas diziam:

- “Aqueles malandros andam lá a tocar o sino para assustar a gente.”

Foram umas infelizes, antigamente. A mim e à minha irmã nada disso aconteceu. Mas muitas mulheres levantavam-se de noite e iam indo para aqueles lados do Carcavão. Não havia estradas como agora. Agora, está tudo limpinho para irem fazer a corrida, mas antigamente não. Elas iam com uma “falheira”, uma tábua assim comprida. Uma vinha à frente e outra vinha atrás. Até diziam que vinham a “bichar” uma com a outra. A da frente tinha que dar os passos certos com a detrás. Se desse assim um passo mais largo, às vezes, podiam tombar e lá caía a tábua para o chão. Iam sempre a pé as mulheres.

Havia gente em Arganil, que era daqui da Benfeita e tinham cá os lagares. Quando era no tempo do azeite, iam essas mulheres, mais que uma e que duas e três, levar lá o azeite àquelas senhoras a quem pertencia o lagar. Eram pobres. A mais das vezes tinham que lavar roupa ao domingo para vestir à segunda-feira. E agora? A gente olha o caixote do lixo, até é uma dor de alma uma pessoa ver as coisas estragadas como lá estão. É sapatos, é calças, é meias, é tudo. Mas coisas boas. O que não podem vestir põem tudo para o lixo.