“Ela disse que em vez de estudar que arranjasse no jornal um emprego”

Como o meu paizinho morreu a minha mãe mudou-se então para Lisboa. Mas naquela altura não havia reformas para nada. Nem o meu paizinho teve direito a nada. Era a minha mãe a ganhar para nós.

A minha mãe então andava assim muito bem arranjada. Ela comprava peixe em Setúbal, mas não carregava com ele. Tinha uns moços de fretes. Vinha para Lisboa e tinha lá os homenzinhos que vinham buscar e depois iam levar aos restaurantes para quem ela trazia aquelas encomendas. Era assim, porque ela não tocava no peixe. Era só para comprá-lo e depois trazer para Lisboa para aqueles restaurantes bons que ela vendia. Governávamo-nos assim. A minha mãe ganhava bem na altura, mas era uma pessoa muito esquisita. Se ela pensasse que havia de ganhar 100 contos, não vamos a contos, 100 mil réis e que ganhasse só 5 dizia que tinha perdido outros 5. Era assim tudo a diminuir.

Fomos vivendo assim e ela disse que em vez de estudar que arranjasse no jornal, o Diário de Notícias para ir ver onde é que havia um emprego. Fazia-me levantar com frio de manhã cedo para ir ver o jornal, para apanhar o primeiro jornal.

Havia aqueles anúncios que vem e eu fui procurar um emprego. Onde é que eu fui? Fui então para uma folha onde estava aprendizas de modistas de coletes. Eu aproveitei que era para não andar sempre com o jornal na mão. Eu lá fui para uma costureira de coletes. A costureira de coletes gostava muito de mim, mas o quê, espetava-me com o trabalho todo na mão. Ensinava-me mas eu aprendia depressa. Então ela ensinava o que é que havia de fazer. Ela recebia os coletes das alfaiatarias e depois vinha, ela fazia e depois ia entregar. Eu é que tinha de ir entregar. Estive ali, mas depois havia uma costureira de calças, como sabia que eu era muito esperta queria que eu fosse para lá. Foi dizer à minha mãe, para eu ir lá para aprendizagem de fazer calças de homem. Eu fiquei danada. A mulherzinha precisava porque tinha uma filha a estudar e o marido tinha morrido. Eu tinha pena da mulher e ela precisava mais de mim que a costureira de calças que tinha marido e tinha tudo e ela não tinha mais nada. Mas a minha mãe obrigou-me a ir, mas estive lá pouco tempo. Estive lá a aprender. Já sabia pontos. Os pontos sabia eu o resto aprendia depressa. Eu fartei-me e:

- Eu não estou mais para ela que ela é rabugenta...

Dizia eu à minha mãe para me safar de lá.

- “Então arranjas agora outro.”

Arranjas outro e eu fui arranjar outro. Então eu fui para quê? Vi lá um anúncio de bordados. Julguei que ia aprender bordados. Isso gostava porque ainda não sabia, queria os bordados. Fui para a costureira dos bordados. Cheguei lá para que era? Para acender o ferro, varrer a casa, dar de comer aos gatos e tinha lá mais bordadoras, mas era à máquina, nem era nenhuma à mão. Daí a um tempo passei a recortar os bordados que elas faziam, mas só a recortar. Um dia em vez de recortar que havia de recortar por fora recortei por dentro. Como fiz aquilo, tinha medo delas que me ralhassem. Estava tudo em monte conforme iam. Depois até fugia para a janela da outra senhora que via passar também um senhor da Guarda Nacional Republicana que morava num prédio de fronte e eu quando o via julgava que vinha alguém para me prender por causa dos bordados. Era uma arrelia que eu tinha.

- Como é que elas vão fazer? Vão-me fazer pagar os bordados. Ai a minha mãe dá-me uma sova tremenda.

Mas não foi. A minha mãe não viu sequer e elas também passaram aquilo à história, mas eu ao outro dia não fui para os bordados porque estava com medo que me fizessem pagar. Fui então para outra costureira que lá havia em baixo ao pé da igreja, mesmo perto dali de uma avenida. Tinha 10 anos.

Na modista de coletes, estive lá e ainda estive bastante tempo. Ainda estive aí uns quatro meses ao pé dela. Depois a minha mãe fez-me girar para a outra e aquilo não havia.

Na das calças estive pouco tempo, que embirrei com ela porque ela foi-me tirar à outra e eu não queria. Que a outra merecia mais que ela que ela tinha capacidade para governar a vida dela e a outra não tinha. Tinha uma filha que queria que ela estudasse coitada ela nem dinheiro tinha para pagar o curso da filha.

Ainda fui para um alfaiate. O alfaiate pediu, fui para lá. Não me importei nada porque gostava de aprender casacos de homem e fazer aqueles pontos e aprender a fazer marcações, coisa que as outras era para acabar trabalhos e aquele era para passar marcações e a enchumaçar e aquilo tudo e esse mais agradava que já ia mais além. Eu queria era saber cada vez mais. Aí no alfaiate já tinha 12. Depois dos 12 anos, a minha mãe embirrou e foi-me pôr numa modista, essa rapariga que trabalhava de costura, mas de costura geral. Foi-me lá pôr na modista para eu aprender costura. Eu fui. Agradava-me tudo o que fosse coser e fazer qualquer coisa que desse resultado, eu gostava.

No alfaiate foi um ano mesmo que eu estive lá. Mas depois ele começou a ser assim abusador em certas coisas e eu não estava agradada com aquilo. Não me estava a agradar e não queria estar no alfaiate. Como não queria estar no alfaiate fui então para essa senhora da costura que a minha mãe arranjou. Porque ele às vezes estava a engomar um casaco e umas coisas e dizia assim:

- “Toma lá, segura aqui. ”

E encostava-me muito as mãos... pronto, não vale a pena explicar mais. E eu não gostava daquilo. Era miúda, não tinha maldade nenhuma, mas aquilo repugnava-se. Disse à minha mãe e aí é que ela me passou para essa senhora então, essa modista que ela lá arranjou de costura. A minha mãe enervada tinha uma rapariga amiga que trabalhava de costura, não era assim grande coisa, mas trabalhava de costura, só que pertencia a outra classe assim mais alta e pôs-me lá aprendiz de modista. Fui para lá, comecei-me a adaptar de tal madeira que depois eu já ensinava as outras aprendizas que lá estavam. Andei de costura ali e ela viu a minha habilidade que depois ela talhava e provava e depois o resto é que ficava nas mãos da Zulmira. Aí já eu estava nos meus 13 anos. Aí fui para lá. Houve uma cliente que foi dizer à minha mãe:

- “A sua menina lá é uma sacrificada. Então ela é que faz o trabalho todo enquanto a outra anda a passear com marido. Vai para a baixa, vai para aqui para ali.”

Eu ganhava 7 e 500 aí. Quando fui para os bordados ganhava 10 tostões. E para os outros a mesma coisa. Os tais bordados onde eu fiz lá aquele disparate. Só sei dizer que depois a minha mãe exigiu-lhe mais ordenado, exigiu-lhe que era pouco o dinheiro que me dava, e para o que eu fazia que não estava certo.

-“Ai não dou mais.”

-“Não dá mais vai para casa trabalhar.”

Levou-me então para casa. Então ainda tinha umas clientezitas ali. Crianças e tudo. Eu andava a trabalhar também para crianças. De maneira que tinha ali umas clientes. E a minha mãe:

- “Então tens que trabalhar aqui.”

E trabalhava, mas depois a minha mãe queria que eu pusesse a linha de alinhavar nas contas, isto e aquilo. Ela não percebia nada de trabalho de costura e queria que eu levasse aquele dinheiro e eu tinha vergonha. Queria só levar o que era o essencial, o trabalho que eu tinha. Depois comecei a aborrecer-me com aquele ideia. Elas iam lá e eu dizia:

- Ai tenho muito que fazer.

Pois tinha porque ela depois não só contente por eu fazer a costura, ainda me empregou numa loja na Praça da Figueira cá fora nos pavilhões, ali estar ao balcão por causa de atender os clientes.