“Deus te guie”

Chegou-se a altura da quarta classe para fazer exame e eu não podia fazer exame. A minha certidão tinha que vir dos Açores, porque em Lisboa não tinha nada. A minha professora mandou pedir. Foi ela mesmo que fez a coisa para pedir a certidão, mas a certidão não chegava. E a professora disse:

- “Ó filha, eu tenho muita pena, mas tu não podes fazer o exame se cá não estiver a certidão.”

E eu disse:

- Mas eu não a tenho cá.

Então no outro dia, estávamos em vésperas já do exame e a certidão não vinha e eu agarrei não fui à escola. Ela não estava habituada a eu faltar à escola nunca e perguntou porque é que eu não fui à escola. E as alunas disseram que a minha mãe não me queria dar o dinheiro. Eram 70 escudos de multa, e a minha mãe negou-se a dá-los.

- “Então se é 70 escudos de multa não fazes exame, que eu não dou.”

Sabendo que eu era uma das melhores que estava lá na escola. Não é para me estar a gabar, mas era verdade. Só gosto de dizer a verdade, não é mentira. Mesmo que a verdade seja contra mim, vai. Eu vi aquilo e fiquei chocada porque gostava de fazer exame como as outras. A professora disse:

- “Ela que venha à escola à mesma.”

Eu fui à escola. Quando cheguei lá à escola ao outro dia estavam várias alunas e a professora com uma caixa de pó de arroz antigas que havia, um pó de Tocalon, eram as caixas assim, fechada e disse:

- “Olha vais levar esta caixinha à tua mãe pela hora do comer. Quando ela estiver a almoçar com vocês, mostras-lhe a caixa. Eu sei que tu não vais mexer e não vais ver o que é.”

Ela tinha confiança em mim. Se eu dissesse que não mexia, não mexia. Não mexia mesmo. De maneira que cheguei à hora do almoço e apresentei a caixa à minha mãe. A minha mãe olhou para aquilo com desprezo. Donativos, todas a darem donativos. Todas as alunas da escola de cima a baixo. Eu olhei para aquilo e quando vi pobrezinhos até com meio tostão. Fartei-me de chorar porque não havia razão para aquilo. Algumas eram pobrezinhas, mas a minha mãe não era pobre, era remediada. Portanto não era coisa que ela não me pudesse dar os 70 escudos, mas ela não os quis dar por mim. Vi aquilo. Fiquei chocada porque li o papel. E a minha mãe abriu a caixa e viu que estava lá muito dinheiro. Naquela altura era muito dinheiro, que era dinheiro diferente do de hoje. A senhora tinha-me dito para ao outro dia levá-la para a escola outra vez a caixa como estava. Levei. Daí a três dias, estava já mesmo, mesmo na véspera do exame. Veio o correio, trouxe-me a minha certidão. Eu então dava pulos de alegria. Era uma alegria enorme só para ver que não ia buscar aquele dinheiro das crianças. Umas eram ricas, outras eram pobrezinhas e eu não queria de maneira nenhuma. Cheguei à escola o dinheiro já lá estava e disse:

- Minha senhora já veio a minha certidão.

Levava a certidão. Ela era até uma professora que até ajudou a fazer a gramática José Maria Relvas, naquela altura era uma gramática que era da autoria dela e o filho era doutor e até estavam dispostos se aquilo não se desse, serem eles a pagar sozinhos, de ver o desgosto que eu tinha de a minha mãe não me querer dar o dinheiro. Depois ela foi entregar:

- “Ó filha eu vou ver se eles recebem. Se não receberem...”

Mas ela já tinha aquela ideia de me levar a exame porque pagava ela e o filho para evitar que eu sofresse aquele desgosto. Ela foi à escola, contou o assunto que estava detalhado. Não quiseram receber porque já estava ali a certidão. De maneira que eu quando vi o dinheiro, disse:

- Mas ó minha senhora, eu agora não quero. Senhora professora, não quero o dinheiro.

Diz ela assim:

- “Ó filha o dinheiro está na tua mão e depois tu é que fazes o que entendes dele.”

Ao outro dia prepararam, eram umas quatro ou cinco professoras. Era primeira, segunda, terceira e quarta classe, estavam lá todas as professoras na sala e as alunas todas de um piso, do outro e do outro. Comecei a chamar por elas para lhes dar o dinheiro conforme estava no papel. Não respondiam. Eu falava numa, noutra, ninguém respondia. Daí a pouco vêm duas assim mais espertitas da quarta classe e disseram:

- “Olha, nós não queremos o dinheiro que está aí. Já todas falamos e o dinheiro é teu e é para comprares uma prenda. Nós gostamos muito de ti é para comprares uma prenda para ti.”

Diz a professora muito depressa, sabendo que indo para a minha mãe que ia mal encaminhado então disse:

- “Eu compro a prenda.”

E comprou-me então uma pulseira de ouro que tinha de um lado uma medalha a dizer “Deus te guie”, essas medalhas até ainda são conhecidas, e atrás dizia “Recordação das tuas colegas”. Queriam que eu levasse aquilo ao exame. Eu fui à prova escrita, tinha ficado aprovada com distinção, ainda não tinham dito, mas eu já sabia que eu ficava aprovada com distinção. Então eu não quis levar para a prova escrita, a pulseira. Achei mal empregado porque estava a escrever e ninguém ma via. Diz a professora:

- “As meninas estão muito arreliadas porque tu não levaste a prenda delas para o exame.”

- Eu não levei porque ninguém ma via. Assim levo para a prova oral. Estou de pé e já ma vêem. Lá levei para a prova oral a pulseirita. Então tinha aquilo numa relíquia louca porque era das colegas e eu gostava imenso. A professora e o marido estavam já dispostos a, se a minha mãe me autorizassem os estudos, eles a pagarem-me os estudos. O filho queria mesmo pagar os estudos.

- “Ela merece porque ela é uma boa aluna e a gente vai pagar os estudos.”

Mas a minha mãe não autorizou. Disse logo que não. A outra filha mais velha não tinha eu também não tinha direito a ter e para a nova também não fazia ideias, mas depois pôs a mais nova a estudar já em Lisboa, mas coitadinha andou três anos para tirar o primeiro e eu que podia avançar não me deixaram ir. Foi assim a minha triste vida de solteira.