“Eu então fiz o Rancho do Benfica para não ficar mal”

Na aldeia era assim essas festas que tinham. Os bailaricos que faziam ao domingo. Eram até no meu andar de baixo. Era um baile tão bom. Parecia um armazém. Iam para ali dançar as raparigas, mas eram muito humildes nessa altura. Chegava-se à hora do Terço dizia-se:

- Meninas agora vamos ao Terço.

Elas iam todas como uns passarinhos à minha frente para o Terço. Depois vinham. Eram raparigas que não tinham maldade, que não tinham aquelas coisas... Podia haver uma ou duas que tivesse um bocadinho de maldade, mas...

Fizemos uns ranchos de despique. Havia o Rancho do Manjerico e eu então fiz o Rancho do Benfica para não ficar mal. Porque as pobres estavam do lado do Benfica, essas não tinham ordem de entrar no Rancho dos Manjericos. Mas eu fiz um do Benfica. Então o que é que eu fiz? Fiz umas saias de papel vermelho. Lá as fiz todas ao serão, porque de dia estava no meu trabalho. Fiz-lhes uns coletes pretos com bocados de saias velhas que elas tinham. Lá fiz os coletes pretos. Fiz uns barretes vermelhos para os músicos. Eram vermelhos e a barra toda picotadinha a branco. Para os músicos levarem. Fiz aquilo e veio a música de Côja a acompanhar. Os músicos a usar o mesmo barrete. E os rapazes também levavam os barretes. Fiz aqueles barretes todos. As saias e os coletes e tudo. Fiz uns arcos todos tesouradinhos de noite. Mas eu disse que queria simples. Eram assim uns arcos, mas depois de enfeitados faziam um vistão. Havia um senhor que já morreu também, que estava em Lisboa e que gostou de ver uma coisa daquelas. Quando estava a ser feito comprou-nos uns emblemas do Benfica, para as raparigas, para pôr nos coletes pretos e também para os rapazes outras coisas. Então pensamos na saída. A música não foi preciso muito. Apanharam-me logo a voz que eu sabia os cânticos todos do rancho, que dançavam no andar de baixo e eu sabia-os, na altura apanhava tudo. Então, conforme a música tocava, fomos para uma sala numa casa que havia quando começa a Benfeita para cima. Fomos lá para a sala dessa senhora e fomos lá cantar a ver se os músicos apanhavam a minha voz. E ver como é que eu era a da frente. Eu também tinha que ir à frente. Apanharam-me a voz, eu cantava e eles já iam pelo meu cântico. De maneira que aprenderam as modas todas. Saímos para a rua. Com os arcos e os balões. Os outros não sabiam que a gente ia com os arcos e os balões. Então o que é que eles levavam? Levavam um ramo de giesta assim com um balãozito pendurado porque não sabiam o que a gente fazia. Pus uns aventais brancos, colados à saia de papel pus aqueles aventais brancos a luzir, com os coletes pretos. Elas não sabiam e então foram fazer uma porcaria. Iam espreitar, iam para os telhados, iam para as varandas para ver o que é que eu estava a fazer. Depois fizeram justamente o contrário do que eu tinha feito. Aquilo foi uma porcaria que não valeu nada. Então só sei dizer que saímos para a rua. Havia uns senhores. Um já morreu. Um ainda está quase para morrer que era o pai da Maria Adelina. Era do Rancho do Manjerico, mas quando viu sair o Rancho do Benfica, fomos para a rua acima, a música a tocar, viemos lá de baixo e atravessámos a Benfeita toda e era ele assim:

- “Eu já não quero saber do Rancho do Manjerico. Rancho, mas rancho a valer é o do Benfica. Esse é que vai ali um rancho.”

Ainda saímos aqui e ainda fomos à Dreia. O padre coitado que lá estava na altura também cantava já todo entusiasmado connosco. Depois dali fomos para a Cerdeira. A gente da Cerdeira brindou-nos com vinho do Porto e tudo. Já não nos queriam deixar de lá sair. Já queriam que fôssemos para outra terra, para o Barril. Eu assim:

-Eu já não vou mais, já estou cansada, já não vou mais.

E eu lá andava com aquilo. Havia partes, havia uma até que eu tinha que entrar pelo meio da marcha por aí fora a cantar. E eu fazia aquela festa toda. Quando havia uma coisa qualquer tinham que chamar a modista para a modista resolver alguma coisa. E foi assim.

Do rancho havia muitas. Mas se me mandassem cantar sem ser para estar a cantar agora, eu sabia muitas.

“Esta marcha vai na rua...
Apita o comboio, lá vai a apitar. Lá vai o Benfica ao Porto a chegar.
No campo do Porto ele vai jogar. E o comboio lá fica na linha a esperar.
Apita o comboio lá vai a apitar. Lá vai o Benfica ao Porto a chegar.
Bola fora agora chuta aí Rogério, bola bem jogada nunca fez mistério.
Apita o comboio lá vai a apitar. Lá vai o Benfica ao Porto a chegar.
Bola fora agora, chuta o Azevedo. Bola bem jogada nunca mete medo.”

Quer dizer, eu própria é que fiz os versos todos. E tinha mais, mas tínhamos também um da marcha de Lisboa. A música era de uma marcha de Lisboa e aí é que entrávamos na Benfeita. Havia várias.

“É tão linda a minha aldeia.
Na minha aldeia não há ódios mas estimas. Tem-se amor pela vida alheia.
Todos são primos e primas. Sem ambições cada qual o seu pão granjeia.
E à noite há serões à luz da candeia. Há animais e criaturas.
Dormem todas com afinco. Pois cá não há fechaduras. Fecha as portas só no trinco.
Junto à fonte há namoricos e ao domingo de manhã.
Desta gente os fatos ricos, vão à missa e vem mais são.”

Era tudo assim. Mas é bonita esta canção. É a simplicidade.

Aquela gente toda adorava-me. Era para vinho do Porto e tudo. Mas a gente foi dançar assim. Para agora já não faço mais. Até que o tal senhor que nos forneceu aquelas... Foram os lenços que ele comprou. Comprou os lenços, comprou os tais emblemas, ele é que comprou tudo. E queria que a gente fosse ao campo do Benfica. Digo assim:

- Ao campo do Benfica. Só com trajes de pano. Uma saia de papel...

Elas quando chegaram à Cerdeira, quando vieram para baixo, o entusiasmo era tanto que vieram a pé. A mim, para eu me vir embora e já não me chatearem mais, vim no carro do senhor e elas vieram a pé. Estafilharam as saias e tudo porque... já estava a terminar o Carnaval. Eu não queria por nada cantar no tempo que já estava para acabar o Carnaval. Era mesmo o último dia e eu não queria. Depois vim-me embora. Depois disso foi só trabalhar.