“A falta que me faz”

Andei na escola, mas não cheguei a um mês a estar lá. Se a outra rapariga tivesse continuado lá, o meu pai deixava-me lá andar. Mas ela tinha 10 anos e como não sabia nada, já lá não ficou. Veio com a mãe e não ficou matriculada. Mas ele apanhou-me nos 7 anos, ai os meus pais até choravam. Eu fazia falta por modo de andar com as cabras pelas serras. E, para mim, foi mau porque podia saber alguma coisa e assim não aprendi nada. As cartas para o meu marido ainda as fazia, mas fazia-lhe o nome porque se fosse preciso tudo em letra, contas ou fosse o que fosse, era tudo em letras, e eu percebia. Em contas, ainda cheguei a andar na prova dos nove, que chamam as quatro operações, e não fui capaz. Quando tinha 7, 8 ou 9 anos tinha até vício já naquilo mas não tive quem me puxasse e fiquei-me assim. Hoje é que eu acho a falta. Fazem falta a toda a gente as contas. Eu sei a falta que me faz. A gente quando vai para comprar até um pãozinho é preciso lidar com o dinheiro, porque senão não mo dão para a gente comer. É preciso a gente dar o dinheiro. É preciso saber. Vai-se comprar uma sardinha, um bocado de peixe, é preciso dinheiro e a gente precisa de saber por modo de saber o que há-de levar. E isso é que me fez muita falta. Na altura como sabia, ainda tive uma explicação ao princípio, mas os meus pais não me puxaram e eu tinha pena até! Lembrava-me assim: - Antes queria que não me deixassem nada, só que me deixassem com a sabedoria de saber somar uma conta. E quando eu estava no melhor tiraram-me da escola. Ainda tenho pena disso. Mas as minhas irmãs, ainda sofreram mais do que eu. Essas nem o nome, porque não entraram na escola. Mas eu entrei lá ainda e passei esse sacrifício. Ia para lá só com o pãozinho. Ainda tinha lá colegas boas. O meu pai para me tirar da escola, coitado, até deixava de comer. Tinha aí, às vezes, umas galinhitas, deixou de comer os ovos por modo de dar à senhora professora, porque ela falava em multas: - “Você não a deixa ir. Vai ser avisado por modo de pagar uma multa.” Eles com medo deixavam de comer, depois lá iam levar qualquer coisa e a senhora assim lá abafava aquilo. Ao fim, eu é que perdi. Nem a senhora, nem os meus pais perderam. Quem perdeu fui eu, que fiquei sem a sabedoria. Ele tirou-me da escola. Podia saber alguma coisa e assim fiquei sem nada. Os meus irmãos não andaram na escola. Ao fim, a senhora parece que saiu de lá e não tínhamos escola mais perto. Mas ainda apanhei lá. Foi a minha sorte, senão nem nada sabia. É assim, uma conta que seja preciso somá-la não sou capaz. Juntar não junto, mas para comprar um pão ou um bocado de peixe ou uma sardinha, para isso não me queixo, porque ainda engano os que cá vêm vender. Mas podia saber! Só tenho pena disso. Hoje já não tenho pena, porque já estou velha, já me governo com a sabedoria que tenho. Mas podia ser alguma coisinha e assim nunca cheguei lá. A escola era no Sobral Magro e a senhora que lá estava era boa. Uma vez o meu pai fez os meus trabalhos de casa e a senhora professora castigou-me. Ela até tinha razão, então o meu pai havia de me deixar fazer os trabalhos nem que fosse mal. A senhora afinal é que me ensinava. Mas ele fazia-me as letras e ela via que estavam bem feitas e que não era eu que as fazia. Com certeza, se era ele que mas fazia. E ao fim cheguei a casa e queixei-me: - Ó pai, então o que você fez? E você não me havia de fazer assim. Então, a senhora mandou-me ir ao quadro e eu nem no lápis sabia pegar. Ainda levei porrada na cabeça, porque foi o castigo que ela me deu. E você escusava bem isso. O que você tinha a fazer, se sabia alguma coisa, era pegar no meu lápis e ajudar-me para na escola saber fazer. Não era assim que se fazia. O meu pai não dava valor àquilo, dava valor era às cabras. Ele queria era que a professora me tirasse da escola. Eram sete rapazes na escola, nenhum me fez mal, não tenho nada a dizer dos rapazes. Ele é que embirrou que eu vinha sozinha com eles: - “Tem alguma jeira a rapariga andar aí sozinha com os rapazes? A senhora tem de ver se ma tira da escola para fora.” E então, a professora disse: - “Não posso tirá-la daqui. Está dentro da idade. O que posso fazer é ir vir meia hora à dianteira e sair também meia hora de dianteira, que assim ela já se não junta com os rapazes.” E ele teve que a roer. A senhora mandava mais do que ele. Mesmo assim ainda devo obrigação à senhora, quando ela lá me dava umas “canabaradas”. Ainda lhe devo obrigação porque sempre me abriu os olhos. E se fosse na escola da terra, então é que ficava com eles fechados!