“A miséria foi muito grande”

Cultivávamos milho, feijão, batata. Outras coisas não cultivávamos, mas trabalhávamos muito. Era tudo para usar em casa. Mais fosse! Nós agora vamos comprar, mas naquele tempo onde é que íamos comprar? Não havia dinheiro, nem havia onde comprar! Só lá longe claro, nas feiras. Só havia uma merceariazita aqui, até eram nossos vizinhos. Agora já nos vêm trazer aqui as coisas à porta. A minha mãe, coitadinha, acabava-se-lhe o dinheiro. O meu pai andava por Lisboa, mas, coitado, era muito agarrado ao dinheiro e ganhava pouco. Ele gostava de comprar os bocados e para quê? Para hoje estarem cheios de matos. E depois mandava sempre o dinheiro à miséria. A minha mãe, coitada, aqui com os cinco filhos, gastava muito. Desses vizinhos nossos que tinham uma merceariazita, podia trazer o que quisesse e só pagava quando vinha o dinheiro. Tínhamos uma tia madrinha que vendia as roupas e a minha mãe, é claro, comprava as roupas porque os meus irmãos para estafarem roupa era uma miséria. E ela comprava as roupas à minha madrinha e ficava-as a dever. Depois quando cá chegava o dinheiro que o meu pai mandava, já não chegava para pagar o que se devia. Coitadita, andava sempre aflita, sempre aflita. E o meu pai dizia assim: - “És uma estragada.” Coitadinha, sabe Deus como viveu. Os meus irmãos tinham duas mudazitas de roupa. Quando andavam na catequese, iam daqui para Pomares a pé. Demoravam duas horas a chegar lá. E a minha mãe à “noute”, tirou a roupita a um dos meus irmãos - que agora até está em Vendas Novas -, foi-a lavar e deixou-a a enxugar ao lume. E de manhã quando se levantou a roupa tinha caído para o lume e abrasou. Coitadinha, chorou. Ele já não tinha mais nada que vestir e não pôde ir. Era de todo aquele moço. Uma vez vestimos-lhe umas calças ao Domingo, ao meio-dia, e ele foi com os rebanhos do gado para os matos. Quando chegou à “noute” trazia as calças todas às tiras. Cortaram um pinheiro e andaram um dia inteiro a azourrar em cima dele. Uns e outros a puxarem à vez. Ele chegou à noite com as calças todas cortadas. A minha mãe chorou tanto. Coitada, sabe Deus como vivia. A miséria foi muito grande. Hoje, ainda fazemos umas coisitas. Levantamo-nos de manhã, tomamos o pequeno-almoço. Já não tenho leite das cabras, mas também não tomo leite que me faz mal. O meu marido toma, mas temos que comprá-lo. Às vezes, faço um cafezito e agora até me habituei a fazer uma farinhinha que me faz melhor. Sinto-me melhor. Depois vou tratar das galinhas e, às vezes, vou buscar uma lenhita ou fazer mais qualquer coisa. O meu marido vai para a quinta lá para cima. Diz que tem lá sempre que fazer. Faz lá muito trabalho. A gente ainda cultiva umas batatinhas, hortaliça e feijão. Temos assim outras coisitas e vamo-nos entretendo com estas coisitas. Depois almoçamos. Fazer o almoço, isso, está em primeiro lugar. Ao meio-dia está feito. A gente pode lá dar as voltas que der mas ao meio-dia o almoço está feito. Isso é sempre a mesma. À tarde vamos para cima outra vez, estamos lá na quinta. A gente diz que já não vai, que não anda assim muito bem, mas continuamos a cultivar lá. Poucochinho, porque a gente não pode. O meu marido ainda cavou muita terra, mas, coitado, já não pode. Muito faz ele! Se fossem alguns da idade que ele já tem e com os problemas que tem, já não faziam nadinha. Mas anda melhor a fazer alguma coisa do que estar sem fazer nada. É deixá-lo andar! Depois, vimo-nos todos para casa. Fechamos a porta às cinco horas. Eu só digo: - Fecha lá a porta. O Senhor Jeová queira que não seja preciso sair mais à rua hoje Acendemos a fogueira, ligamos a televisão, lemos ou fazemos mais qualquer coisa. Às sete horas ele aquece a sopinha para depois se ir deitar.