“A fazer judiarias”

A minha mãe fazia a sopa duas vezes ao dia, coitadinha. Fazia uma sopa muito boa. Só que ela, coitadinha, não tinha com quê. A gente trabalhava muito, mas nem todos os anos se produzia. E tivemos um ano em que comemos a sopa um ano inteiro só com farinha. A gente habituou-se e depois já nem gostava dela de outra maneira. Ela punha a panela grande de ferro ao lume. Trazia-a toda muito limpinha. Andava sempre ali a raspar a panela com uma faca por fora e por dentro. Punha-a ao lume e cortava a hortaliça, as couves para um alguidar. Lavava a hortaliça primeiro e depois cortava-a. Depois ia buscar a farinha e punha-a por cima das couves. Estando a panela a ferver, “zumba”, metia lá dentro. Em tendo a sopa a ferver, já não se levantava dali. Ficava sempre a mexer a sopinha e ficava muito boa! Mas tinha que fazê-la duas vezes ao dia. Coitadinha, cinco filhos e ela seis, tirava seis tigelinhas de sopa. Eu comia menos, claro, porque era rapariga. Tinha irmãos mais velhos que trabalhavam muito e não ficavam bem só com uma tigela de sopa. Comiam duas, era o que lhes apetecesse. E depois para a noite tinha que fazer outra vez sopa. Também cozia o pão duas vezes por semana. Tínhamos que ir buscar lenha para cozer a broa e eu dizia-lhe assim: - Porque é que você não faz como a tia Porquéria que anda lá sempre com a broa rija debaixo dos alguidares. Assim come-se menos. Coza muita. A minha mãe fazia um pão que ficava sempre bom. Ficava todo escrapeadinho, com aqueles buraquinhos. A gente naquele tempo comia sopa e pão. Outras coisas não tínhamos, claro, mas sopa, pão e queijo tínhamos à fartura porque tínhamos muito gado. A minha mãe não mandava a gente ir tratar do gado, fazia-nos ir cortar mato e lenha. Tratar do gado era com ela. Não confiava na gente. Tínhamos muito leite e queijo. Recordo-me que a minha mãe fazia uns queijos muito grandes. À noite, às vezes, quando não queria fazer a sopa, ou quando havia pouco para todos, ela fervia um caldeiro de leite de cabra e a gente botava tudo abaixo. Naquela altura não se vendia queijo. Mais tarde, passámos a vender, mas naquele tempo não havia quem procurasse e nós comíamos mais à fartura. Quando a gente de manhã se levantava, a minha mãe nunca nos deixava ir para o trabalho sem comer. Fazia-nos sempre o café. Naquele tempo já tomávamos café na casa da minha mãe. E era logo uma broa que ia. Então, íamos cortar o mato para o gado. Depois vínhamos e íamos buscar os molhos de lenha, os feixes de lenha. Quando a gente chegava, ela deixava dentro de uma gaveta da mesa uns pedaços de pão com uns pedaços de queijo muito grandes. Houve alturas em que a gente, às vezes, já queria outras coisas, porque já andava farta de comer queijo. Mas não havia mais nada e a gente tinha de o comer, claro. Andei na escola até aos 9, 10 anos. Talvez não fosse tanto. Só fiz a 2ª classe. Ainda cheguei a andar com duas ou três professoras. Elas também se seguravam pouco tempo. A escola era no Sobral Magro. Íamos a pé a fazer judiarias. A minha mãe foi criada aqui em baixo numa quinta, chamavam-lhe a Ribeira. Uma irmã da minha mãe casou e ficou a viver. Tinham rebanhos de gado, claro! Íamos pela estradita abaixo, começávamos a arrancar pedras e a jogá-las para aqueles matos, que são uns sítios muito elevados. E só a víamos a vir da casa para fora a apertar as mãos na cabeça! Eram aquelas pedras a irem ter lá abaixo. Uma vez, a minha tia veio cá. Via-a e fui logo esconder-me, pensei que ela contar à minha mãe. Ela nem disse nada à minha mãe, mas estava cheia de medo que dissesse à minha mãe. Isto de raparigas não era tanto. Os rapazes é que era pior. Esses, não há nada de mal que não lhes lembrasse. As brincadeiras dos meus irmãos nem têm explicação. Eram terríveis. Juntavam-se uns aos outros, iam ao mato de “noute” para roubar aos outros vizinhos. Havia um senhor lá em cima na horta a viver e eles iam para lá corrê-lo à pedrada de noite. E ele, coitadinho, só dizia assim da janela: - “Levam um tiro!” E eles a arreganharem o dente porque ele, coitadinho, não podia sair à rua, senão ainda era pior. E eles riam-se! Depois a mulher desse senhor vinha cá abaixo, a casa da minha mãe, lavrar as queixas. E o meu irmão negava! Negava! Que não foi ele, que não foi ele! Agora é que conta que também era ele, mas a gente sabia que era ele.