“Trabalhar debaixo do chão”

Comecei a trabalhar a cavar terra com o meu pai. Quando saí da escola também guardei cabras e ovelhas. Quando tinha os meus 16 ou 17 anos fui para umas minas que havia em Góis. Trabalhei lá um ano e tal na exploração de volfrâmio, chamavam àquilo volfrâmio. Mais tarde, fui para as minas da Panasqueira. Andei lá a trabalhar debaixo do chão três meses. Aquilo também era no duro. Mesmo duro! Recordo-me que ganhava 24 escudos. Só que a gente ouvia dizer tanta coisa, ora que ficavam avassalados debaixo das rochas e então andávamos sempre com o coração nas mãos. Assim que tive possibilidade de arranjar trabalho em Lisboa, migrei para lá. Devia ter aí os meus 18 anos, mais ou menos, quando migrei para Lisboa. Na altura fui trabalhar para a cortiça. Lá fazia todos os trabalhos. Na cortiça posso-me gabar que sabia fazer todo o trabalho, só menos o trabalho de escolha. A cortiça era classificada por primeira, segunda, terceira, quarta e quinta. De maneira que só esse trabalho é que não sabia fazer, o resto fazia tudo. Eu traçava-a lá no Alentejo, na fábrica traçava novamente, depois era recortada, limpa e enfardada. Fazia tudo. Depois, era cozida numa caldeira. Eu fazia todos os trabalhos da cortiça. Era por isso que o patrão gostava de mim. Gostava de mim porque ajeitava-me com todos os trabalhos. Ajeitava-me e era uma pessoa desenrascada. Era eu e um primo meu, quando o patrão tinha qualquer problema para o desenrascar depressa, os escolhidos eram logo o Fontinha e o Manuel Alves. Éramos dois primos, dávamo-nos muito bem, ainda hoje nos damos muito bem. Éramos duas pessoas desenrascadas. Por vezes, brincávamos um com o outro a experimentar forças. Às vezes, atrasávamos o trabalho, por causa de andarmos na brincadeira, mas a gente em pondo as mãos a desigual, de um momento passávamos logo a outro. Podíamos estar atrasados mas de um momento para outro a gente ficava logo à frente deles porque éramos uns tipos desenrascados. Os salários eram fracos. Eu quando para lá fui, fui ganhar 24 escudos por dia. Mais tarde, fui para 27 escudos e depois passei para 30 mil e oitocentos. Era o salário mais alto que havia nos corticeiros. Quando ia para fora, tinha que ir para o Alentejo, então ganhava mais qualquer coisa, 37 escudos. Era duro ter que lá viver debaixo dos chaparros, dos sobreiros, no meio da cortiça. Era um bocado difícil, por vezes sozinho, mas pronto a gente mesmo assim aproveitava só porque ia ganhar mais qualquer coisa. Aguentava às vezes dois, três e quatro meses sem vir à fábrica. Quando vinha recebia aquele dinheirito junto e ficava todo satisfeito. Apesar de aquilo não ser nada bom, mas bem, era o que havia. Entretanto, tivéramos uma crise de trabalho na cortiça e vim para o pé da mulher, Soito da Ruiva. Tivéramos aqui dois ou três anos. Depois, houve então um familiar meu que me arranjou trabalho em Lisboa para o peixe, para a tal dita Ribeira Nova. Na Ribeira Nova era descarregador de peixe. Carregava o peixe em padiolas, tirava-o de dentro dos barcos para dentro da lota. Eram dois colegas, um pegava de um lado e outro pegava no outro da padiola carregada com as caixas do peixe. Depois tínhamos de descarregar dentro da lota. Depois daí, os trabalhos da Ribeira Nova acabaram e passaram para a Docapesca. Tive uma altura em que até cheguei a ser o cobrador da luz na aldeia. A empresa arranjou um cobrador para cada aldeia e eu era o de Soito da Ruiva. Não é para me estar a gabar, mas era uma pessoa que, apesar de ter feito apenas a 3ª classe, aprendi muito ainda e ajudei várias pessoas. Naquele tempo até a minha sogra chegou a dizer para mim: - “Olha que o homem que é ocupado por muita gente, como é o teu caso, é porque te acham com competências para isso. Aquele que não é incomodado por ninguém é porque também é um homem que não presta para nada, que não tem competência para nada.” Felizmente ainda ajudei muita gente, mas agora, caducou tudo, a velhice traz tudo. Quando o trabalho na Ribeira Nova acabou, foram escolhidos pelo encarregado quais eram os que haviam de ir para a Docapesca. Na Docapesca o trabalho era diferente, embora mais favorável. A minha profissão era considerada a mesma mas em carros. Já usávamos carrinhos, onde púnhamos três ou quatro caixas em cima e era só empurrar e levá-lo ao destino. Mesmo assim ainda havia colegas que diziam mal do trabalho. Diziam mal e eu só dizia para eles: - Ladrões, vocês nunca souberam o que é que foi trabalho. Quando vocês dizem mal deste trabalho, nunca soubeste o que é que era trabalho ruim. Se eles andassem com os matulões às costas como andei na cortiça, então é que tinham razão para dizer mal do trabalho.