“Uma senhora curiosa”

As crianças nasciam em casa. Não iam para o hospital, nem para a maternidade. Era uma senhora que havia no Piódão, que era curiosa. Não era enfermeira, não era parteira, não era nada. Vinha a casa e ajudava as pessoas. Ajudava a mãe e o bebé. Na casa da minha mãe, ficou lá um mês a tratar dela e de mim. Quando as pessoas falam de nascimentos, eu digo:

- Eu ainda fui muito privilegiada. Quando nasci, tive lá uma babá ao meu lado um mês!

Mas não era nada babá, era uma senhora curiosa. Eu sempre tive curiosidade de ver quando os bebés nasciam, mas nunca me deixaram ver. Mandavam-me sempre embora. Eu assim:

- Mas eu gostava tanto de ver nascer um bebé...

Nunca vi. Quando nasceu o meu filho, eu já não era tão jovem assim, mas a minha mentalidade também não era muita. Ia toda feliz. Achava que ia ver os bebés nascerem. Não sabia como é que era. Mas tive tanto azar, que não vi. O meu filho não nasceu na sala de partos. Foi na sala de observações, meio às pressas e não vi nada. Estava lá outra senhora doente para ter, mas o meu nasceu primeiro e não vi nada. Já tenho visto na televisão, mas ao vivo nunca. Também não tive oportunidade de ir assistir a nascer os meus netinhos. Hoje já vai as avós e os pais e mais... A minha nora não quis ninguém. Não quis a mãe, não quis o marido, nem me quis a mim. Eu acho que, se hoje fosse ter outro filho, também não queria lá ninguém. A pessoa não está tão à vontade. Na minha altura, não era permitido ninguém assistir. Mas agora é.

Essa senhora curiosa ajudava a nascer os bebés e também ajudava quando as pessoas morriam. Cá, a maior parte das pessoas morria sem saber de quê. Por exemplo, agora dá um AVC. Antigamente, não diziam que era um AVC:

- “Olha, deu-lhe uma trombose.”

- “Olha, deu-lhe uma embolia.”

Deu-lhe isto, deu-lhe aquilo. As pessoas morriam e não sabiam do que era. Nem era preciso dar certidão de óbito, nem nada. Era diferente. Hoje já é preciso o médico passar uma justificação do que é que a pessoa morre. Nem que não seja daquilo, tem que lhe dar algum nome. Essa senhora tratava das pessoas que estavam mortas. Lavava-os, vestia-os, preparava-os como agora fazem os senhores das funerárias. Eu tenho uma vaga ideia, mas nunca assisti a essas coisas. Nem me deixavam, nem eu tinha coragem. Agora, vem a funerária e trata de tudo. Na altura, não. As pessoas morriam em casa, eram vestidas em casa e eram veladas em casa. Onde elas depois vão, a urna, não se chamava uma urna. Era um caixão. Era um senhor que fazia aquilo, umas tábuas forradas de tecido. Era horrível. Eu era miúda, mas lembro-me. As pessoas escolhiam o tecido. E eram tecidos horrorosos. Para os levarem para o cemitério, punham-nos naquilo. Era horroroso. Agora não é bonito mas, naquela altura, era pior. Chocava muito. Nem quero pensar.