Uma infância saudável

A minha infância foi saudável. Eu ajudava em casa. O meu irmão também. A minha mãe não me deixava ir com ela para o campo trabalhar. Eu gostava muito de ir, mas ela não me deixava. Tinha que fazer a lida da casa, que era o que eu não gostava. Ficava em casa a fazer o almoço, a arrumar a casa, a fazer o que era preciso e o que podia. Aprendi a cozer pão, que era a broa. Era eu muito miúda, mas já sabia. Queijos, também fazia. Era a tarefa da casa, as lidas da casa.

Tínhamos galinhas, cabras, ovelhas, um cão e um gato. Do cão, não me lembro do nome, mas ainda sei o do gato: chamava-se Arrentela. O cão também devia ter nome, mas eu não me lembro. Os animais iam pastar sozinhos. A gente punha-as para o monte e elas iam. A maior parte do tempo, estavam lá no curral, como se chama cá. Davam-lhe ali comida e ficavam fechadas. Quando iam para o monte, iam sozinhas. Depois, voltavam. Não era preciso andar a guardá-las.

Jogávamos às pedrinhas. Ajuntávamos umas quantas e jogávamos. Saltávamos à corda, brincávamos às casinhas. Fazíamos no chão uns murozinhos de pedra e lá dentro era a casinha. Eram as brincadeiras que havia. Não havia brinquedos, como há agora. Nem jogos. Não jogávamos ao dominó, nem a essas coisas, que não havia. Mas eu posso-me considerar, na altura, uma criança bastante privilegiada. Eram poucas as crianças cá que tinham brinquedos e eu sempre tive. Tinha muitos carinhos da minha avó, do meu avô, do meu tio. Tinha um tio que, coitadinho, não era deficiente, mas tinha problemas. Ele tinha um carinho especial por mim. Ninguém podia falar para mim. A minha avó também era assim. Achavam que as pessoas me comiam só de falarem para mim.

Quando ia para a escola, encontrava muita gente pelo caminho. Vinham trabalhar para o campo. Eu ainda ia longe e já estava a cumprimentar as pessoas e a dizer os bons-dias ou as boas-tardes. As pessoas, às vezes, faziam conversas connosco. Gostavam, porque eu fui sempre muito comunicativa. Falava para todo o mundo. Às vezes, o meu irmão dizia-me assim:

- “Ó manita, cala-te! Cala-te!”

- Então, porquê? Não posso falar?

- “Fala à vontade!” - ele já muito chateado comigo - “Fala à vontade!”

Era a maneira de ser das pessoas. Como eles me oprimiram tanto e como é que saí assim para falar... A nossa maneira de ser também é como nós somos criados. Quem não recebe amor, também não o tem para dar. Quem recebe, tem para dar. Mas isto, acho que já é da pessoa. Sei lá, não sei.