“Eu com a minha mãe tinha uma relação muito boa”

A minha mãe era doméstica. Era no campo que trabalhava. Por fim, ainda trabalhou numa cerâmica em Lisboa, onde faziam louças antigas, azulejos e coisas assim. O meu pai trabalhava em Lisboa. Era vendedor de materiais de construção. Dantes era assim: o chefe de família ia trabalhar para Lisboa e a mãe ficava na terra a criar os filhos. Foi o meu caso. Onde havia muitas pessoas a trabalhar, na altura, era na Lisnave. Trabalhava um e essa pessoa fazia com que os outros fossem para lá. Um puxava os outros. As pessoas aqui da terra estavam mais estabelecidas. Tinham café. Na altura, chamava-se uma leitaria, não era café.

Depois o meu pai achava que aquilo não era vida. Ele lá e nós cá. Quando eu já era crescidita - tinha 13 anos - fomos para Lisboa. Eu e o meu irmão. Ele tinha menos dois anos que eu, teria 11. Vivíamos lá todos. Acho que me adaptei bem. Aliás, seja a que situação for, eu tento-me adaptar o melhor possível. Costuma-se dizer que onde nós estamos e governamos a nossa vida, aí é a nossa terra. Por isso, não tive dificuldade em me adaptar.

Quando o meu pai morreu, já há 14 anos, a minha mãe quis vir para cá. Não queria estar lá. Estava habituada, porque viveu em Lisboa muitos anos, mas não gostava de rua. Quem fazia as compras e certas coisas até era o meu pai. Eu não quis estar a contrariá-la. A nossa casa é num terceiro andar sem elevador. Para subir e para descer, não era fácil. Como não vinha à rua, ficava só dentro de casa. Não era bom para ela ficar na gaiola. Nós vínhamos todos os anos, mais que uma vez. Sempre que podia, para ela não ficar sozinha. Viveu sozinha ainda muitos anos. Eu também não podia vir. Não podia deixar o marido e vir para cá.

Depois que o meu marido se reformou, viemos. A minha mãe já era mais velhinha. Tê-la cá sozinha e nós lá não era fácil. Coitadinha, era uma angústia para ela e para nós. Ainda viveu sozinha, uns aninhos, enquanto podia, que ela era muito independente. Queria viver a vida dela. Eu dizia-lhe:

- Olha mãe, pedimos às moças do Centro para que lhe tragam a comida...

Para não estar aqui com a preocupação de a fazer, mas ela dizia:

- “Olha filha, não. Enquanto eu puder, eu faço a minha comida. Quando não a puder fazer, também já não a posso comer.”

Há três anitos, quando já estava pior e morreu o vizinho que vivia ao pé dela, coitadinha, já não ficou lá mais. Veio para aqui viver connosco. Minha querida mãe, sempre esteve aqui. Adaptou-se muito bem à minha casa. Só me dizia assim nos princípios:

- “Ai filha, não sei para que é tanto luxo...”

- Oh mãe, mas que luxo?

Ela chamava luxo ao microondas e a uma cafeteira do café. A minha mãe fazia o café no lume, numa cafeteira de alumínio. Punha aquele café de mexer em cima do fogão. Era muito bom. Ainda hoje me lembro daquele café. O que ela cá via de diferente da casa dela, achava que era um luxo:

- Oh mãe, não, não é luxo. Agora é assim. Então, não vê que nós lá em Lisboa também temos?

- “Pois é, filha, mas isso já não são coisas para mim...”

Ela, coitadinha, trabalhou sempre. Mesmo velhinha, já com os seus 90 anos, trabalhava cá em casa. Gostava de lavar a louça. Quando era só os pratinhos, eu deixava, para ela se sentir útil. Gostava muito de preparar as saladas e a hortaliça. Nem deixava que fosse eu a preparar! Dizia-me assim:

- “Oh! Tu fazes tudo à pressa!”

- Ó mãe, mas eu também faço bem!

Só deixou de trabalhar quando lhe deu aquilo há quatro meses. Deu-lhe um AVC. Foi quando a minha mãezinha parou. Antes, andava sempre a varrer ali o terraço e as escadas, a regar as flores... Agora, as flores conhecem bem a falta dela. Cortava as couves para as galinhas. Cá usa-se assim: corta-se como o caldo verde, mas não tão fininho. Ela cortava aquilo ali com todo o preceito. Ainda no dia que ficou doente, disse-me:

- “Olha lá, já foste migar as couves às galinhas?”

- Oh mãe, hei-de ir! Tenha calma! Se não as comerem cortadas, comem-nas inteiras!

- “Olha, vê se vais lá depressa!”

Tinha este jeito de me mandar, porque achava que ainda tinha poder sobre mim. Eu aceitava tudo. É por isso que também me custa muito. Há mães que não têm assim uma relação muito boa com as filhas ou com os filhos, mas eu com a minha mãe tinha uma relação muito boa. E com o meu pai também. Mas tudo o que é bom acaba...