“Havia ali o espírito de entreajuda”

Até ao terceiro filho, ficaram aqui. Depois, o meu pai, como já tinha outros horizontes e outras ideias, ficou por Lisboa. Ele era uma pessoa muito vivida e desenrascada. Era um homem, já para a época, com horizontes bastante grandes. Deve ter sido das primeiras pessoas a emigrar daqui da zona de Chãs d'Égua e a procurar sustento em Lisboa. Se não foi o primeiro, anda muito próximo disso. Antigamente, o marido emigrava e a mulher ficava aqui a tratar dos filhos e da terra.

Por casa dos meus pais - que não era uma casa grande - passaram os meus tios e primos e aquela gente toda. Quando iam daqui para Lisboa, ali era o primeiro poiso, enquanto não estabilizavam. O meu pai era uma pessoa muito querida. Era o ponto de ancoragem das pessoas que iam daqui. Primeiro mês, dois meses, três meses, estavam lá em minha casa. Era o primeiro assento até arranjarem a sua vidazita. Havia realmente ali o espírito de entreajuda. Depois, lá iam para os seus sítios.

Eles eram aquilo que a gente chama trabalhadores indiferenciados. Não tinham especialidade nenhuma. Ou iam para a estiva ou para os estaleiros ajudar a limpar os cascos dos navios ou dar serventia a pedreiro. Pedreiro, aqui da terra, não. Foram mais para a zona da construção naval. Houve uma altura em que, praticamente, toda esta gente daqui estava na Lisnave, Setenave e isso tudo. O meu pai, a dada altura, era da CUF, na Rocha do Conde de Óbidos. Depois, pedia ao encarregado, o outro pedia ao outro, o outro pedia ao outro. Levavam daqui uns chouriços e uns presuntos, aquelas coisas para ajudar a lubrificar a máquina. Um garrafãozito de azeite, uma garrafita de aguardente, um frasquito de mel lubrificava aquilo. As pessoas podem não contar isto, mas é a realidade. Era o conhecimento. Iam agregando as pessoas. As próprias comunidades que nós temos aí - chineses, africanos, angolanos, são-tomenses, guineenses - são assim. Há ali um chamamento, uma protecção.

Concentravam-se nas Janelas Verdes, em Alcântara. Em frente ao Museu Nacional de Arte Antiga, na zona da Rua do Olival. Havia casas em que se alugava só a dormida. Disso, recordo-me. Tenho uma memória presentíssima. Era uma casa comprida, uma água-furtada em que as camas eram juntas umas às outras no chão. Era um sobrado no chão e as camas estavam juntas umas às outras. As pessoas tinham umas casas grandes, pareciam quartéis. Até o vão da escada servia para alojar uma pessoa. Trabalhavam ali na Rocha do Conde de Óbidos, na Nacional de Navegação, que era uma empresa que havia na altura, na Companhia Colonial ou na Sociedade Geral. Quando os estaleiros mudaram para a Margueira, toda aquela gente foi para lá. Naquela zona envolvente, para o lado do Alto do Moinho, todos têm ali a sua casa com o seu quintalzito, o seu terreno. Já não cultivam aqui, mas cultivam lá. Os hábitos ancestrais são mais fortes do que eles. Não conheço muitos ou quase nenhuns que se ficassem por viver no cimento armado. É uma vivendazita com o seu quintal ou o seu terreno onde tratam das suas coisas.