“Não me lembro de querer comer e não ter”

Eu nunca me lembro de querer e não ter nada para comer. Trabalhávamos muito, mas nunca nos faltou comer. Houve lá vizinhos que ainda hoje dizem que passaram muita fome, mas nós não. Andava lá uns vizinhos meus, coitados, também eram muitos irmãos e o pai não tinha posses. Até tenho um irmão, o mais velho, que diz ele que quando às vezes ia para o mato tomava um bocado de pão de milho e levava outros bocados para os outros colegas que iam com ele. Para lhes dar, para irem comendo e andando para o mato. Nunca se esquece. Nós ainda assim até à data, nem eu nem os meus irmãos nenhum dia se passou fome. Comíamos o que havia.

O que havia mais era batatas, feijão, grão, hortaliças. A gente matava o porquito, e às vezes, a gente comprava qualquer coisa por fora quando saía. E assim tinha de se remediar todo o ano. É que era. Quem cozinhava em minha casa era a minha mãe e a minha avó. Quando podiam. Mais tarde, era eu e a minha irmã.

A minha avó também ia à feira. Primeiro era a Lourosa, mas à Lourosa nunca me lembra de ir. Ao fim começou em Avô, aí ia muitas vezes. E agora a feira é na Vide. Era de mês a mês. Ia lá buscar alguma coisa para comer. Sardinha, alguma coisa de bacalhau, mercearia. A gente tinha de lá ir buscar tudo. Às vezes quando cultivavamos batatas, não tinhamos batatas que chegassem para todo o ano, então também tinhamos de lá ir buscar, à cabeça. Levávamos uma cesta, enchiamos a cesta cheia, e traziamos à cabeça por aí cima. Aí umas três horas de Vide para cima com um carrego à cabeça. Quando era no Verão carregos grandes. A gente chegava aqui já cansada de todo. Não havia outros transportes. Não havia estrada para nos virem vender nada. A gente tinha de ir buscar se queria comer. Passámos um bocado duro. Essas pessoas mais antigas ainda foi pior que nós. A minha avó comprava-nos umas sapatilhas de pano por fora, e pneu por baixo. Como o pneu era muito baixinho começou-se a virar ao contrário. Mas quando ela trazia alguma coisa a gente ficava mais contente.