O cartão 200

Depois dos dois anos na Panasqueira fui aprender de alfaiate em Casegas, na Beira Baixa, com o António Marcelino Saraiva. Esse é que foi o meu mestre. Estive lá pouco mais de um ano. Mas aquilo foi uma coisa assim de um momento para o outro. Foi uma chatice que apanhei de trabalho, nas Minas. O meu pai fez-me vir para casa para ajudar a fazer a sementeira. Quando andava nas Minas da Panasqueira, andava lá mais um irmão meu. Depois o meu pai disse:

- “Olha, vem agora a sementeira. Tem que vir um para casa para me ajudar a fazer a sementeira, porque eu não posso fazer.”

Os meus pais ainda tinham umas terras e era tudo à enxada. Não era lavrado. Era tudo à enxada do homem.

-“De maneira que eu por mim não posso. Não me aguento sozinho. Tem que vir um para casa.”

- Então, pai, agora veja lá qual é que vem.

Eu escolher e o meu irmão escolher não podia ser. Ele só pedia um. O outro ficava lá a ganhar alguma coisa para as despesas da casa, porque o meu pai já não ganhava dinheiro. Fazia o trabalhinho das fazendas, ia lá pelos vagares dele e ia andando. Agora outra coisa não. Depois disse:

- “O Manel há mais tempo que anda lá na Panasqueira. Vem ele e fica lá o Zé, que lá anda há menos tempo.”

E eu vim. Mas vim só com intenção de ajudar a fazer a sementeira e depois saía. O meu pai depois de me cá apanhar, acabou a sementeira, diz ele:

- “Olha, deixa-te só mais uma temporada para me ajudares. Eu sinto-me cansado.”

E eu, claro, tive que assistir. Depois, voltei. Eu tinha o meu cartão das Minas da Panasqueira, que era o 200. Ainda me recordo. Era o cartão 200 dos mineiros. E, nessa altura, já lá andavam 2000 e tal. Na última semana de Agosto, eu fui lá levar o comer ao meu irmão e depois pedi trabalho. Cheguei lá e já tinham dado o meu número. Eu fui ter com o encarregado, que me disse:

- “Tive o teu cartão muito tempo aqui na minha mão. Mas, como agora pediram-mo, eu tive que o dar e agora não sei se ele já estará dado a outro. Se ainda estiver em teu nome... Não sei. Olha, vai ao escritório saber.”

E eu fui lá. Eu conhecia o Soares, que era o senhor que tratava disso.

- “Ó senhor Soares, eu precisava daquilo.”

- “Então, já há um tempo que não te vejo!”

E eu disse:

- Olhe, desde Abril.

E foi. Tinha sido de Abril para Agosto.

- O cartão 200 em que nome é que está?

E ele disse-me que era um sujeito do Minho. Era pessoal que lá andava também do Minho. E eu disse:

- Então, não está no nome de Manuel Sousa?

- “Não.”

Ele foi ver e diz:

- “Olhe, passou de Manuel Sousa para um sujeito que pertencia a Viseu. Por isso, agora já não pode ser”

- E não há esperanças de haver admissão de mais pessoal para aí?

Diz ele assim:

- “Olhe, isto não é com falta de trabalho. A Companhia não tem falta de trabalho, não. Andam aí uns senhores que não são cumpridores dos seus deveres, não querem trabalhar. Então, a Companhia resolveu pôr esses de parte, de mandá-los embora.”

Naquele tempo não havia esse decreto de os indemnizar nem coisa nenhuma. Não sabe, vai-se embora!

- “Antes de Outubro não vai haver admissão nenhuma. Agora só na escolha. A partir de Outubro, por diante, é que poderá haver. Mas, se houver, vem cá e és admitido. Porque tens dois anos de trabalho e não tens falha nenhuma.

Em dois anos tinha perdido um dia. É o que era a nossa pontualidade. Mas eu ia para casa, pela serra e não sei por que maneira é que me passou pela ideia de me tirar disto. É quando eles querem, não é quando nós podemos. Mas não saí por um capricho. Saí pela necessidade de ajudar o meu pai. Depois, cheguei a casa à noite e:

- ”Quando é que voltas?“

- Olhe, não volto mais.

- ”Não voltas mais porquê?“

- Fui lá ter com o senhor Soares, que é a pessoa que está incumbida dessas coisas e ele disse-me que só a partir de Outubro. Há aí umas coisas, têm estado a despedir, mas não é por falta de trabalho. Não, é uma escolha que andam a fazer ao pessoal.

- ”Então, há-de ser o que Deus quiser.“

- Eu tenho o que fazer. - cá para comigo.

O meu pai tinha o que fazer mas eu, com 22 anos, tinha que pensar um bocadinho. Não era só no futuro dos meus pais. Também no meu futuro, o dia de amanhã. Antes não. Sempre disse e digo: um rapaz que pensar em se casar antes dos 20 anos é uma asneira, porque ainda não tem a vida cumprida, tropa e tudo isso. E depois é um problema. O meu pai casou com 23 anos. Saiu da tropa e casou-se. Resolveu a vida dele. E eu também segui o mesmo caminho. Depois comecei a pensar. Outro dia fui para a cama, mas a minha ideia lá estava trabalhando. De manhã, levantei-me e digo para o meu pai:

- Ó pai, estive esta noite a pensar, ainda vou aprender alfaiate!

- ”Ai, tu agora, olha se querias aprender de alfaiate tivesses aprendido quando eras mais novo.“

- Pode ser que ainda vá a tempo.

- ”É contigo. Mas, olha, pensa e vem aqui para baixo.“