“Não é para toda a gente”

As pastelarias têm os seus quês. Nessa altura, era diferente. Agora, é outra coisa. A hotelaria não é para toda a gente, tem muito que se lhe diga. Quem vê por fora pensa que é muito fácil. Mas não é. É um bocado duro. Não é para todos. As senhoras não gostam muito de estragar as mãos e as mãos na cozinha estragam-se um bocado. Daí a dificuldade em arranjar empregadas. Estas raparigas novas andam aí a tirar os cursos. Mas depois quando chegam cá fora, se aparecer outra coisa, já não vão para a hotelaria. Eu conheci uma rapariga que tirou lá o curso e está ali para Fajão, numa cozinha. E um rapazinho também, que tirou o curso, e está ali para um hotel em Penelas. Mas, de resto, poucas seguem aquela vida. É muito raro seguirem a cozinha. A cozinha é uma coisa bastante complicada e o balcão também. Não é para toda a gente. Eu, na cozinha, nunca trabalhei. Podia desenrascar um prego, uma bifana, uma sandes, tostas mistas, essas coisas de balcão. Mas ir para a cozinha, de roda dos tachos e das panelas, nunca fui sozinho. Não tinha assim muito jeito para estar lá. Preferia o balcão, o contacto com o cliente, servir e levantar as mesas, todo o trabalho de balcão.

Um dia de trabalho era assim: a pessoa chegava, entrava e começava a trabalhar. Depois, é andar sempre em cima das pernas! Para pessoas de idade, não é muito fácil, mas para uma pessoa nova, andar oito horas em cima das pernas, aguenta-se muito bem e não tem problemas. Não tem muito trabalho. Eu nunca troquei um pedido. Tinha boa memória. Assim a tivesse agora. Eu até me lembro mais dos tempos antigos. Lembro-me melhor de coisas de quando eu tinha 5, 6, 7 anos do que o que fiz ontem. A memória começa a falhar. Eu até já devia ter tomado uns comprimidos, mas andar a tomar comprimidos? Eu não me sinto doente. Só me estou a sentir um bocadinho desmemoriado. Esqueço-me das coisas com mais facilidade, das coisas actuais.

O pior problema é mesmo a cozinha. A cozinha é um bocado complicado. O principal é saber o que se vai fazer. Há pessoas que gostam de uma coisa, há outras que gostam de outra e depois não se vende. Estraga-se. O mais difícil é fazer-se sem ser por encomenda, porque eu posso estar a contar com 20 clientes para almoçar e só aparecerem dez. Se não se souber reconduzir o comer dos outros dez de maneira que as coisas não se estraguem, é um prejuízo. O que se ganhou com os dez que se aviaram vai-se perder com o que ficou. Têm de ser pessoas com conhecimentos para reconduzir aquilo de modo a ser utilizado no dia seguinte. Por exemplo, o cozido. Hoje é cozido, mas amanhã pode ser feijoada à transmontana. Há muita gente que não sabe disso. Em quase em todo o lado a feijoada à transmontana é dada ao outro dia do cozido, quando este não saiu bem. O cozido é um bocado complicado. Vem um:

- “Ah, eu queria mais um bocado de orelha.”

- “Ah, eu queria mais um bocado de chispe.”

Por isso, é um bocado complicado e algumas casas só servem cozido um dia por semana. É tudo quanto posso dizer dos problemas do dia-a-dia das pastelarias. Mas ainda hoje tenho pena de não ter pernas para lá andar, apesar de aquilo estar um bocado mais complicado. Hoje não é tão fácil como antigamente. Tanto o pessoal como os produtos têm de ser tratados de outra maneira. A ASAE anda a atacar e as pessoas têm de ter muito cuidadinho com as coisas que metem nos frigoríficos, com a maneira como guardam os produtos, com as limpezas das casas, que antigamente falhava muito também, isso é verdade. Não havia limpeza suficiente. Mas hoje também estão a exigir demais. Quando eu lá estava não tenho razão de queixa. Foi um ramo de que gostei muito. Gostei e continuo a gostar.

Nessa altura, a minha esposa estava comigo. Ela era doméstica, mas quando eu estava aflito por qualquer coisa - o empregado tinha-se ido embora, por exemplo - ela ia-me ajudar no balcão ou na cozinha. Essa é que fazia tudo. Tanto fazia balcão como fazia cozinha. Mas era melhor que eu, porque eu não fazia cozinha e ela fazia. Ela já tem 68 anos, já não está muito nova também, mas mesmo assim, ainda desenrasca. Quando era nova, era dela que eu me socorria. Telefonava:

- Olha, vem cá! Vem cá! O empregado hoje não apareceu!

- Olha, dói a cabeça à filha ou ao filho da cozinheira e ela teve de ir com ele ao médico...

- Olha, não sei quantos...

E era ela que vinha desenrascar. Só esteve empregada depois mais tarde. Mais tarde, esteve a trabalhar. A minha vida foi passada assim. Andei lá 50 e tal anos. Agora vim cá para cima. E aqui estou até vir o resto da vida.