“Os divertimentos eram muito poucos”

Vivi aqui na aldeia desde 1960 a 1972. Ajudava os meus pais, porque aqui começava-se muito cedo a trabalhar. Quando já conseguiam fazer alguma coisa - com 6, 7 anos -, as pessoas começavam a trabalhar. E eu, apesar de ir à escola, também não fugia à regra. Nós tínhamos montes de coisas para fazer: acartar lenha, buscar mato para os animais, que estavam no curral, roçar o mato, que agora está altíssimo... Naquela altura, estava tudo limpinho. Isto era tudo cultivado. Eu, com 10 anos, já cavava uma leira. Ao lado da minha mãe e de outras pessoas. E dava bastante trabalho. Era tudo manual. Hoje, temos umas maquininhas, mas naquele tempo era tudo manual.

Também ia guardar o gado e se tivesse fome bebia logo o leite directamente da cabra. Levava as cabras a 5 quilómetros de distância! Não podia dizer:

- Agora vou a casa.

Demora muito tempo a fazer 5 quilómetros por mato. É quase um dia. Eu ia de manhã, levava as cabras, levava no bolso uma bucha, como a gente chamava - um bocado de chouriça, um bocado de queijo e broa, porque pão, não havia -, e depois ficava ali todo o dia. Só que aquilo não chegava e a gente tinha que se remediar ou com isso ou uma coisa qualquer que surgisse. Era complicado.

Éramos mesmo obrigados a trabalhar. Éramos uns escravos da família. Por obrigação, mas também porque não havia mais nada para fazer. Aqui, o que é que a gente podia fazer? Obrigatoriamente, tinha de ajudar a fazer alguma coisa. Era quase um divertimento.

Normalmente, as famílias eram sempre numerosas. Havia bastantes filhos. Quando fui para Lisboa, em 1972, já tinha sete irmãos. Éramos oito. Depois, já estava eu em Lisboa, ainda nasceram mais dois. Nós todos tínhamos de fazer alguma coisa. Uns, umas coisas e outros, outras. De vez em quando, também nós próprios nos batíamos uns aos outros. Por incrível que pareça, não tínhamos grande coisa para fazer. É a palavra mesmo certa. Tínhamos de arranjar uma forma. Nem que tivéssemos que embirrar um com o outro. Não tínhamos assim tanta coisa para fazer e não ligávamos, também, muito à escola, porque o meio em que iniciávamos também não dava. As brincadeiras, além de jogar às escondidas - como nos dizíamos -, escondermo-nos uns dos outros, eram muito poucas. Os divertimentos eram muito poucos. Para nós, tomar banho a um poço um bocadinho maior, já era uma alegria. E quando não íamos ali, íamos pela ribeira abaixo procurar um maior:

- Este pocinho não dá? Vamos à procura de um ali para baixo que haja lá grande.

Escolhíamos um açudezinho para tomar um banho. Claro tinha de ser mais ou menos no Verão, porque a água aqui é sempre fria todo o ano. Nessa altura, fica um bocadinho melhor, porque de resto, está bem está! Não é fácil tomar banho aqui.

Não tinha brinquedos. Só vi brinquedos mesmo, já tinha uns 9, 10 anos.

Um tio meu, na altura, estava na tropa na Guiné. Quando veio cá no último ano que saiu, meteu na cabeça da gente que o Pai Natal vinha - foi na altura do Natal - e nós de manhã quando acordamos tínhamos uma sacada de brinquedos. Muitos bonecos na cozinha. Alguns até já velhos. Foi a primeira vez que eu vi brinquedos ao vivo. Já tinha uns 10 anos.

De resto, fazíamos os nossos brinquedos, umas coisas artesanais. Aquelas fisgas - uma forquilhazinha - para mandar aos pássaros e às vezes uns aos outros. Umas bolas de pano, que depois se molhavam, ficavam muito pesadas e já não jogavam nada. Também não tínhamos grande espaço para jogar. Era muito triste. A nível de divertimentos, era muito triste.

Aqui, nós tínhamos mesmo de nos dar bem. Não havia hipóteses de se dar mal. Quem se desse mal, estava tramado, levava porrada. Não é como hoje. Eu levei muita porradinha dos meus pais. Mais do meu pai do que da minha mãe, claro. As mães, normalmente, não batiam tanto. Bastava ele dizer:

-“Vai ao mato.” - e eu não ir.

Ou:

-“Vai à lenha.” - e eu não ir.

Ou:

-“Vai buscar água ali à fonte.” - e eu não ir.

Não era preciso muito para se levar porrada e da grossa. Não era um simples estalo na cara como se dá hoje. Era porrada a sério. Não era a brincar.