“Ninguém dormia porque a gente não deixava”

A gente, éramos nove raparigas. Andávamos a acartar madeira. Era aquelas travessas para a linha do comboio. A gente levantava-se de noite, de Verão. Levantávamo-nos aí à volta das duas horas, uma hora, e íamos para o pinhal. Há um larguinho, que chamam a praça, onde a gente cantava e o povo todo acordava. Depois íamos para o pinhal e acartávamos alguns carregos para o caminho. Pelo calor estávamos em casa e depois íamos outra vez buscar aqueles carregos que estavam lá. Ninguém dormia porque a gente não deixava. A gente cantava assim:

“Já rompe a aurora sobre a madrugada
Lindas flores vamos apanhar
O nosso rancho tem um primor
Lindos amores para comparar
O Sol raia sobre as flores
A lua brilha sem ter rival
Cantamos todos com alegria
Como este dia não há igual.”

Tudo acordava. A gente cantávamos isto mesmo no centro da terra, na praça. Tudo acordava. Ainda no outro dia estava assim uma a dizer:

- “Ai credo, fizeram aqui um barulho na praça. Não conseguia dormir.”

Digo assim:

- Foi pena não vir no meu tempo, que olhe que nesse tempo dormia-se bem.

A gente não deixava dormir. Oh, deixavas! Mas é o que eu digo, era uma vida de escravos, má, mas havia saúde, havia alegria. A gente conforme amanhecia, anoitecia.

Cantávamos ranchinhos, cantadinhos. Cantávamos por aí no campo. Era a sachar, a regar... Cantávamos umas de um lado e outras de outro. Havia muita gente. Ainda me recorda. Deles todos não, mas recorda-me ainda muitos. Há quantos anos que eu não digo isto, que eu não canto. Porque a gente cantava. Era assim:

“Ó violeta formosa, florida no jardim
Só espero de me ver bem um dia ao pé de ti.
Desfolhei um malmequer só para ver se tu me amavas,
Por fim acabei de ver nem sequer em mim pensavas.
Uma camélia vaidosa movida pelo ciúme
Abraçou-se a uma rosa para lhe roubar o perfume.
Ó Bela vem à janela vem ver o céu estrelado
Deixa o sono que te prende vem ouvir cantar o fado.
Ó Bela vem à janela, se não queres vem ao balcão
Vem ouvir as pancadinhas que dá o meu coração.”

Isto eram os rapazes às raparigas. Devia ter aí uns 17, 18, quando eu andava no rancho. A gente ensaiava para o rancho em qualquer lado. Chegáramos a ter dois despiques. Um baile no outeiro e um baile no fundo. Havia um rancho no outeiro e outro no fundo. A gente vinha do trabalho ia para os ensaios. Agora uma pessoa está velha, não se pode mexer, não pode fazer nada. Os tempos que já lá vão.