“Já íamos mesmo encomendados”

Fui para Lisboa, com 10 anos, numa excursão de Chãs d'Égua. Eu, maluco por aí fora! O que me levou a ir era o que a todos levava. Não era a gente que queria. Saíam da quarta classe:

- “Vai-te embora.”

Porque é lógico: não era só porque estava a casa sobrecarregada como também porque um tipo não tinha perspectiva. Na altura que eu fui, iam todos. Já tinham ido outros antes de mim e foram os outros todos depois. Não havia perspectiva no Piódão. Mas o meu irmão morava lá. Naquela altura, não era máfia que há agora de Leste ou quê, mas já íamos mesmo encomendados:

- “Tenho lá um irmão na terra. Saiu agora da escola e não sei que mais...”

- “Trá-lo lá!”

Pronto. Já tinha onde dormir, já tinha trabalho certo. Era uma altura assim: um tipo desempregava-se aqui e daí a uma hora já estava a trabalhar noutro lado. Hoje não. Se um tipo perde o emprego, anda ali meses à procura. Mas, nessa altura, o miúdo vai ser educado com os patrões, que são ou familiares, ou da zona, ou porque gostam de lá ter estas crianças. É lógico, a pessoa lá era bem tratada, fosse pelo patrão ou quê... Quando começava a sair já desses meios em que a pessoa era acolhida tipo familiar e ia já para outras dimensões maiores, então já havia respeito e mais coisas. Por exemplo, nos restaurantes, acho que era uma escravidão.

Eu fui para uma casa própria da pessoa para onde fui trabalhar. Aquilo era ali ao pé do Museu de Arte Antiga, entre o Príncipe e uma rua que vai lá para trás, para os palacetes, para o Marquês. Eles tinham ali uma casa que era um prédio antigo, terceiro andar, da cidade de Lisboa. Depois, para trás, tinha tipo uns anexos, mas que eram casas na mesma onde viviam muitas pessoas até do Piódão. Tinham, por exemplo, uma sala, uma casa de banho, uma cozinha e dois quartos ou três. Na altura, podia até haver poucas casas como aquela. Era já tudo de quarto, terceiro andar só. Mas aquela não. Tinha um espaço grande onde tinham um jardim. Mas aquela casa já é muito antiga. Já foi um banco, agora é não sei o quê. Aos anos que não passo por lá.

Pronto, a rapaziada saía daqui com 9, 10 anos. Não ia para as obras. Era restaurantes ou cafés. Depois é que, mais tarde, já começavam a ter os irmãos noutros trabalhos e também iam. Por exemplo, a Lisnave empregou muitos dos que vieram da tropa na altura, como os meus irmãos e os da época deles. Depois esses levavam outros para lá, também para a CUF, meteram-se na estiva, ganharam dinheiro e por aí fora...