Memórias do tempo dos descalços

Antigamente calçavam o que havia. Era botas dessas que o sapateiro fazia aí. Na minha altura talvez não, mas na altura do meu pai, havia um sapateiro em cada aldeia. Fazia botas, tudo. Era a profissão dele. Ainda hoje existe aí um ou dois desses tradicionais a fazer aquelas botas duras. Um tipo calça aquilo, anda aí a subir e a descer, quando dá conta, tem os pés parece uma pedra, porque, é lógico, são duras. Hoje em dia o calçado é: um tipo vai por aí acima, leva os pés nuns ténis adequados, bota adequada e não sei quê. Mas, quando era com tamancos, aquilo nem dobrava. E a altura dos descalços, ainda que não há muito, em 1930 talvez. Faço ideia... Ainda havia aí muito pessoal descalço. Se um gajo, às vezes, até com um ténis, mete o pé e sente uma pedra que está para cima ou um espigo no mato, quanto mais esses descalços. Cuidado. Devia ser daquele duro mesmo! Agora já há carros bons na província. Antigamente tinham que andar a pé. Escravidão existe, mas naquela altura não sei... Não eram obrigados, mas tinha que ser assim.

No Natal havia lá algumas prendas!? Aqui as prendas era assim: quando uma pessoa precisava de umas botas, o pai começava a olhar:

- “Eh pá, se calhar essas ainda duram mais um tempo com uns pontos.”

E ele sacrificava-se a dar os pontos para não gastar dinheiro, porque não tinha. Na minha altura e até dos meus irmãos, já era uma fase em que se não passava fome. Mas houve aí uma décadas atrás, talvez nos anos 1930, 1940, que foi mesmo a sério. Não só por causa da Guerra Mundial que era em todo o lado, como depois agravou-se com uma grande seca de sete anos. O meu pai disse-me que, no Tojo, chegaram a estar filas de dia e de noite no último nascente para apanhar água no cântaro. Porque os nascentes começam na serra, só que vão secando sempre de cima para baixo. E, com sete anos de seca, nós aqui somos logo os primeiros a ser atingidos. A gente não vai imaginar na história deles que passa ali uma veia, que vem do rio e vai para a Lagoa Grande da Serra da Estrela e que, se não chover, a água não cai nos nascentes. Eles baseavam-se que passava ali um túnel de água que vem do mar para a Serra da Estrela.

Já não estou a imaginar bem isso, mas lembro-me também que não havia electricidade, por exemplo. Os meus irmãos ainda são dessa altura. Não tinham televisão, não tinham rádio. Já me lembra que o primeiro rádio que aí houve foi enviado para o meu pai por um tipo que era embarcadiço. Foi para uma senhora, que ainda é viva, que é a tia Helena. Mas eram as rádios que aqui apanhavam. Via-se mal aí nas ruas. A gente andava sempre de noite, pimba! Mas já sabíamos que havia sempre uma janela com claridade, fosse do candeeiro ou fosse da fogueira. Andávamos aí às escuras nós? Não, um tipo já sabia quem era. Depois tinha que se ir à água aí à fonte e não tinham casas de banho ainda. Isso apareceu posteriormente, já quando eu saí daqui. Embora, na altura, já andassem a meter uma canalização de água, eu não acompanhei. Estive em Lisboa parece que uns dez anos sem cá vir, acho que foi nessa fase que veio a luz.