“O meu pai era aquele homem que é serrano puro”

As recordações que tenho do meu pai é que é a pessoa com quem se lida diariamente em criança e depois por aí fora. Acho que é a relação mais bonita que há porque é assim: seja ele quem for, transmite a outro ser, que somos nós. Temos que o respeitar de qualquer maneira. A partir daí cada qual tem a sua relação. Mas o meu pai era aquele homem que eu digo que é serrano puro! É um homem que tanto faz na cozinha, como em casa, como na fazenda, como carpinteiro, pedreiro, sapateiro... Era aquele tipo que fazia tudo! O que precisava fazia.

Esse homem existiu, não era só o meu pai. Na época dele, talvez em 1920 e tal ou 1930, nasceram para aí muitos como ele. E eu digo que é o homem serrano porque o que se fala agora que o homem tem que se desdobrar, tem que ter não sei quantas actividades, eu acho que o homem da serra sempre existiu assim. Fazia tudo! Se tinha um animal para matar, tinha que imaginar como é que havia de ser, tinha que o matar. É um homem prático! Nasceu para viver e desenrasca-se um bocado em tudo, seja aqui, seja em qualquer lado. E não era só o meu pai. Eram outros povos que andaram cá antes de nós. Também tinham que se adaptar e saber estar onde estão. Uma pessoa vai para a cidade ou está lá, vai crescendo ali, vai vendo o que é aquilo. Aqui é a mesma coisa. Ainda cá há desse, por exemplo, eu e o meu vizinho, o Fernando. Serranos há muitos, mas o que eu considero um homem puro serrano é aquele tipo que, se for preciso imaginar que faz, faz, pronto! Pode ficar mal, mas faz na mesma. Ou, se calhar, o sapateiro que havia aí - pagavam-lhe bem - andava com uns ténis ou um sapatinho à medida? Não, aquilo era aquele formato, era sempre o mesmo. Hoje já há 47,5 ou 32,5 e tal. Antigamente não. O sapateiro metia aquilo numa forma, truca, truca, truca... Não era 41 ou quê. Se um tivesse o pé chato ou se o outro tivesse o dedo mais comprido, já era um problema grave, porque ele só fazia aquela medida. Andava com umas mais largas, então. Ninguém andava apertado.

O que é que fazia o meu pai? Era o que eles faziam todos: era andar aí com uma barra de ferro, com uma marreta e com uns guilhos (que hoje é um demolidor ou é uma máquina já) na construção das estradas.