“Andava descalço e espetou-se-lhe a brocha”

O agasalho era conforme se via. “Deus Nosso Senhor manda o frio conforme a roupa”. A pessoa tinha que aguentar. A roupa era aquela com que se habituava a andar e pronto.

A maior parte do calçado que se cá usava era tamancos. Em princípio, andava-se muito descalço. Ainda me lembro quando, às vezes, caíam aí grandes nevões. Andava-se descalço em cima da neve e não fazia mal nenhum. Quantos, quando eram pequenos, não andavam aí em cima da neve sem roupa por baixo, sem calças, sem nada. Iam andando. Quando eram pequenitos, andavam assim. Mas nada fazia mal. Tudo aquilo fazia bem. A gente ia aí pelas serras, pelos outeiros acima. Quando a neve encaramelava, parecia que andávamos em cima de um sobrado. A neve, naquele tempo, estava um mês sem daqui sair da povoação. A gente, muitas vezes, levantava-se de manhã, abria a casa e estava ela pelo meio da porta. Para se ir buscar a água, que não havia distribuída, ia-se à fonte. Muitas vezes, chegava-se à torneira e a água estava congelada lá dentro. Era preciso levar uma pinga de água quente de casa, para botar em cima da torneira para ela descongelar. Acontecia muita vez isso cá. Agora, já cá não caem nevões como caíam naquele tempo. Cai hoje, amanhã vai-se logo embora. Naquele tempo não, caía bem.

As mulheres e as raparigas usavam umas tamancas abertas. Há sítios em que ainda se vê isso a vender. Até era quente por causa de ser madeira por baixo. Tinha umas brochas grandes espetadas na madeira. Contavam aí que uma ocasião, uma pessoa cá na terra espetou uma brocha no pé. Andava descalço e espetou-se-lhe a brocha. Aquilo tinha um espigo grande. Chegou a casa e disse assim:

- “Olha, vê-me lá, pá. Parece que se me espetou aí um pico.”

E era uma brocha que lá tinha agarrada! Tal era a grossura do courato do pé. Era assim a vida.