Criada na miséria

Antigamente, cultivava-se tudo. Não se comia de outro lado. Era só alguma coisa que dava a fazenda, feijão, batatas. A gente cultivava a terra toda. Não estavam essas “matiças” como agora está. Cultivava-se muito milho e depois a gente cozia as broas, de uma semana até à outra. Cozia-se todas as semanas porque moía-se o milho e fazia-se farinha. Havia cá muitos moinhos. Ainda cá há, mas não têm água.

Para as nossas fazendas mais longe demorava-se uma hora a pé. Ainda se demorava um bocado porque é longe. Para cima ainda se demorava mais. Agora está tudo relva. A gente não pode cultivar. Agora já cá vêm vender tudo. Haja dinheiro. O dinheiro é que é pouco. A terra dá muito trabalho, tem de se sachar, tem que se empalhar, tem que se enleirar, tem que se regar, regar, regar até se apanhar o renovo. O renovo era o milho, as batatas e os feijões. Dão muito trabalho as nossas terras. Há quem só sache e não empalhe, mas nós aqui temos de empalhar.

Também tivemos sempre gado. Em primeiro eram ovelhas. O meu pai tinha ovelhas e eu era pequenina, mais o meu irmão, levávamo-las a uma quinta, chama-se o Soito Escuro, para cima do Torno. Dormíamos lá quando era Verão, numa palheira. E depois tinha-se lá o gado, tinha-se os animais nessas lojas. O meu pai fazia o comer no caminho, onde se passava para o Torno porque tinha lá as palheiras, com umas copeiras. Deixava lá a panela de um ano para o outro para cozinhar. Era uma panela de barro. Deixava nessa copeira, de Verão, no tempo da sacha. De Inverno cozinhava em casa. Morava-se aqui no Piódão, vinha-se cá dormir. O que é vinha-se de noite “pia cima” e ainda se ia “pia baixo” lá para o Torno, para o mato. Roçava-se muito molho de mato.

Então depois dormíamos lá. O meu pai punha-nos a dormir na palheira e ele andava lá a trabalhar, a cultivar a terra. Trabalhou muito o meu pai. Vinha botar a água, para uma terra que nós chamamos o Vale, e tornava a ir ter ao Soito Escuro. Nós lá estávamos na palheira.

Quando era de Verão, no tempo das cerejas, nós tínhamos uma cerejeira ao pé da palheira, era já de noite ainda andava no cimo da cerejeira para nos apanhar as cerejas para nós comermos. Era o nosso jantar, que a gente chamava a ceia. Tínhamos uma figueira grande, íamos também apanhar cestos de figos. Quase que comíamos só a fruta, broa e sopa. O meu pai tinha sempre uma leira de couves brancas, cozia-as com as batatas. Também cultivava umas batatitas. Mas a gente não comprava a semente. Era a que ficava de uns anos para os outros. Não havia dinheiro! Os mais iam ganhar dinheiro mas o meu pai não ia. Não tinha dinheiro nenhum, então era só do que dava a fazenda que a gente comia.

Misturava na sopa uma mão de farinha por cima das couves. Migavam-se as couves para uma panela e depois mexia-se a farinha bem mexida nas couves que era para não “umbeliar” na panela, para não ficar aos torrões. Às vezes, tinha-se de desfazer na colher, com um garfo, ainda tinha de se desfazer bem desfeitinho. Era a mistura da sopa. Agora ninguém comia a sopa assim. Fui criada muito na miséria.