O meu pai era César Lopes Pacheco e a minha mãe Maria dos Anjos. Eles apanharam o Pacheco, eu apanhei o Lopes.
Da parte dos meus avós eram dez filhos de cada um. Dez e parece que até eram 11. Um morreu em pequenito. Já não conheci os meus avós. Do meu pai também eram dez. Do meu sogro também eram dez. O meu sogro era um homem aqui muito estimado, era o presidente da Junta, era uma pessoa de respeito. Era meu primo direito. Tenho um irmão que também teve dez filhos ainda. Agora até está em Lisboa
O meu pai andou até um pouco afastado da Igreja, mas ai da gente se passasse pelo senhor prior e não tirássemos a boina. Quando chegássemos à escola, se não dissesse: “Bom dia minha senhora” e não lhe tirássemos o boné. Uma coisa que ele tinha: era muito recto e muito severo. No entanto, era muito sincero. Queria tudo pelo direito.
O meu pai faleceu no dia em que eu fiz 30 anos. Fiquei com uma recordação. Nunca tinha festejado os anos. Esse ano andava lá nas Minas da Panasqueira e eu disse até para o meu irmão:
- Olhe, como o pai está de cama e para fazermos companhia à mãe, esse dia vamos fazer bacalhau assado, tenho ali dois coelhos à caçador e há aí já dez litros de vinho para estarmos a conviver.
Depois o meu pai já me tinha dito:
- “Olha, não vás mais.”
Mas eu tinha-me aleijado num seixo e disse:
- Ó pai, eu vou porque tenho um dedo aqui inchado que está infectado.
- “Então vai, mas vem depressa. Vem depressa ou já não me encontras.”
O meu pai pressentiu a morte mesmo. E então depois eu vim. Eu gastava aí umas três horas e meia e nesse dia, gastei duas horas e 25 minutos. Eu até galgava tudo. Cheguei lá, passei à minha porta. O meu pai morava em baixo, estava no andar de baixo. Ia a minha mãe com uma mão cheia de lenha da loja para cima e eu disse:
- Ó mãe, então e o pai?
- “Olha, ele já desde as dez horas que não fala. Ele de manhã lidou muito por ti.”
Disse ele: - “Ai que já não vejo aquele querido filho que eu estou nos últimos momentos da minha vida.”
Ele pressentiu muito bem a morte e depois eu quando cheguei:
- Então pai está melhor?
Ele pôs sobre a travesseira o cotovelo e disse:
- “Ah já vieste, ainda bem! Só estou a pedir uma santa morte. Dai-vos bem uns com os outros e, olha, ide ouvir missas, porque eu andei uns anos que descuidei-me. Andei afastado, mas Deus é rico em misericórdia.”
Eu emprego muitas vezes isso nas minhas práticas. Deus é rico em misericórdia.
- “E vai aceitar irem vocês ouvi-las. Ele vai-nos aceitar em desconto, porque eu estou arrependido . E o Senhor, desde que estejamos arrependidos, nunca negou o perdão a ninguém. Também não me vai negar a mim.”
Se estiver a falar ou a pensar em pessoas que morreram fico chocado, mas neste não fico nada chocado. Nada. E eu fiz as nove sextas-feiras que ele andou afastado da Igreja. Fiz nove sextas-feiras por ele. E ele a partir daí um dia preparou-se, vestiu-se andava assim a passear na casa, com jornal debaixo do braço eu disse:
- Ó pai, então o pai vai ver os meus irmãos a Lisboa?
Eu já tinha uns irmão em Lisboa. Os mais velhos é que ajudaram a criar os mais novos. Diz ele assim:
- “Não, vou-me reconciliar. Vou. Preparei-me porque vou-me reconciliar e vou-me confessar hoje.”
Ele andou uns 17 anos sem se ir confessar. Apanhou lá uma chatice qualquer com um padre que aí esteve, ele nunca me contou bem. E depois eu fiz-lhe as nove sextas-feiras e a partir daí ele era comunhão diária. Pedia ao senhor padre que cá estava para lhe levar o sagrado, queria comungar todos os dias e foi até ao último dia, até morrer. Então teve uma morte santa. Eu cheguei e ele disse:
- “Olha fica cá esta noite.”
- Ó pai eu venho tão maçado, fica cá o Manuel. - que é o meu irmão, aquele que tem dez filhos, que na altura estava cá. - Olhe fica com o Manuel pai, eu venho tão maçado de trabalhar. Olhe eu ando lá ao pé de uma giesta ou que é aquilo, é quase no nível um a vir de lá de baixo de onde eu ando. Faz de conta que eu entro ali à eira e ando lá em baixo ao pé da Foz d´Égua a fazer aquilo tudo. Ainda ando bem, mas chego cá fora e já venho maçado e depois ainda esta caminhada.
- “Não, mas fica cá tu também.”
Fiquei, eram umas três da manhã eu levantei. Ele tinha com um copo de alumínio azul de esmalte e bateu com a colher e assinalou que queria água. Depois disso já não falou mais. Eu fui para lhe dar água pelo copo e ele já não conseguiu beber. Dei-lhe três colheres de água. Eu estava numa cama ao lado, fui-me a deitar já me deixou de respirar. Teve uma morte santa portanto, no dia em que eu fiz 30 anos. Era um Domingo. Ainda andei lá nas Minas cinco dias, mas parece que até ouvia a voz dele da rocha:
- “Não vás mais. Ó, mas prometes que não vais mais.”