“Era o mais novo lá da casa”

Quando a gente se levantava de manhã, a primeira coisa que fazia era ir à tábua cortar um bocado de broa. Era uma tábua pendurada com umas cordas nos barrotes em alto, onde púnhamos as broas encostadas umas às outras. Estavam ali para lá não chegarem nem os ratos, nem os gatos. Para não andarem lá a comer na broa, que a gente havia de comer. Havia muitos ratos, porque as casas eram de somenos e tinham buracos. Os ratos entravam em casa com facilidade. A gente chegava ali, cortava um bocado de broa e vai por aí fora, a comer e a andar. Não havia conduto. Era um bocado de broa. Podão ao ombro com uma corda e íamos por aí fora ao mato e à lenha.

Tinha oito irmãos. A minha mãe teve 11 filhos. Eu fui o que fechou a porta. Era o mais novo lá da casa. Fui assim mais o “cu de mimo”, como costumam dizer. Já tinha um bocadito mais de cobiça. Todos nós éramos pobres. Mas havia aqueles que ainda eram mais pobres. A gente, com uma vida estabilizada e uma família constituída e organizada, sobressaía um pouco mais.

Não conheci outro ambiente em casa, mas agora vejo que era o melhor que podia ser. A minha mãe tinha de estar sempre em casa. Tinha de fazer o comer para aquela gente toda. O meu pai distribuía o serviço por cada um de nós. Depois, vínhamos a casa, ao almoço, dar contas. Trazíamos o relatório do que fizéramos e as novidades do que víramos, do que se passou. Às vezes, até com umas anedotas pelo meio. Naquele tempo, havia muita caça. A gente, às vezes, ainda trazia. Nós tínhamos um cão. Ele agarrava lá os coelhos e a gente aproveitava. Também tirávamos os ovos das perdizes, quando era no tempo. Havia aí perdizes por todo o lado. Trazíamo-los no capelo do capucho. Era proibido, mas não sei como era, a gente tirava os ovos todos quantos encontrava. A Natureza quando dá, dá com abundância. Aquilo para a gente era um grande petisco. Frigia-os. É como o ovo da galinha, só que mais gostoso. Depois, o meu pai tornava a distribuir outro trabalho. Ia cada um para a sua vida. Um ia guardar o gado, outro ia guardar as cabras, um ia guardar as ovelhas, outro ia ao mato... Na fazenda há sempre que fazer.

A gente não parava. O tempo disponível que houvesse era para arranjar lenha. Cozinhávamos tudo assim. Os fornos de cozer e a broa também.

Mas havia pouca lenha, porque a gente arrancava as torgas, as giestas e os giestais para queimar para as cavadas. Por isso, íamos mondando as oliveiras e os medronheiros. Iam-se cortando aquelas partes que vão ficando mortas, que não têm tanta vitalidade e não dão tanto fruto. Aproveitávamos essas pernadas para lenha. O tempo também nos roubava muito tempo. Havia grandes nevões. Chegava a cá estar aos meses. Havia muitas semanas que a gente não podia trabalhar. Só ia tratar dos animais e mais nada. Estava tudo coberto de neve. Aproveitávamos para fazer outros trabalhos em casa. Fazer cortiços.

Nessa altura havia muita criança. Havia sempre uma média de seis, sete ou oito todos os anos. Se fosse só um filho, diziam que era morgado, que era aparvoado. “É morgado, é aparvoado.” Havia muita gente mesmo. Eram muito poucos aqueles que ficavam só com um filho ou dois. Por isso, havia gente de todas as idades. Havia com 1 ano, 2, 3, 4, 5, 15, 20... No meu ano, fôramos sete. No outro ano logo a seguir nasceram oito. E assim sucessivamente. Antes não havia televisão. Nem se pensava nisso. Eles entretinham-se... O tempo também não era muito. Eles tinham a vida muito ocupada. Mas lá arranjavam tempo para essas coisas. A verdade é que havia muito miúdo.

A gente não parava. Não é como agora. Íamos ver o que os adultos andassem a fazer. O que eles fizessem, era o que a gente fazia. Se eles andassem a fazer uma ponte, fazíamos uma ponte. Lembra-me fazerem uma ponte ali por baixo do largo. Eles iam fazer casas, nós, os miúdos, íamos fazer casas. Tudo o que víssemos fazer, íamos fazer. Até quando vieram as Minas. A gente nem lá foi ver, nem lá ninguém nos levou, mas imaginávamos. Tínhamos aí um sítio adonde era um bocado mais barrento, toca a abrir minas, a fazer minas. Era assim a nossa brincadeira. Aquilo que víssemos fazer, íamos logo imitar. Eu acho que aquilo era muito instrutivo, porque a gente tinha que puxar pela imaginação. Agora têm os brinquedos. Já vem tudo feito. Não precisam de fazer nada. Nós fazíamos! Só não tínhamos ferramentas. Não nos deixavam pegar nelas. A gente ia pegar numa ferramenta:

- “Não mexas aí, que tu estragas!”

Isso era uma guerra. Para tirar ferramentas aos pais, era às fugidas. Tínhamos de lhas roubar para poder trabalhar. Senão, eles não nos deixavam. Eu lembro-me. Eu e as gerações do meu tempo. A gente já aprendeu com os outros.

Fazíamos ginástica aí nessas árvores, a ver quem é que revirava os pés pela cabeça. Como agora se faz nesses parques, com os baloiços, a gente fazia aí nas oliveiras e nos castanheiros. Uma vez, aqui, andávamos todos nos castanheiros no baloiço. Arrancou-se quase metade do castanheiro! Ficámos todos lá debaixo. Não se aleijou ninguém. Foi um milagre!

Ocupávamos o tempo assim. Fazíamos outras coisas que agora já nem me lembro mas, mais ou menos, era esta a actividade que a gente tinha. Passavam-se assim os anos.